MULHER TRAÍDA


 




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ÍNDICE
(clique no número do episódio)

 001   VOU CONTAR A HISTÓRIA DE MARIA

002    MULHER COMO QUALQUER OUTRA

003    NASCIDA NUM MUNDO TRAIÇOEIRO

004    VÍTIMA DE MUITAS TRAIÇÕES

 005   VÍTIMA DE SUAS PRÓPRIAS TRAIÇÕES

006    NASCE MARIA, TERCEIRA FILHA

007    PAI ORGULHOSO NÃO DESGRUDA DA FILHA

008    PAI SEMPRE "MUITO PRESENTE"

009    MÃE ENCIUMADA, INIMIGA DAS FILHAS

010    MÃE BICHO QUE DESPREZAVA O PAI

 011   NÃO SE LEMBRA SE JÁ AMOU O PAI

012    UM ABUSADOR DAS FILHAS

013    MARIA CRESCIA, BONITA MARIA

014    NÃO SABIA O QUE SENTIA PELA MÃE

015    SABIA BEM O QUE SENTIA POR TODOS AO REDOR

016    NÃO SABIA O QUE SENTIA PELOS COLEGAS

017    SABIA O QUE SENTIA FORA DE CASA

018    TUDO CONTRARIA, TUDO PRA CONTRARIAR

019    VONTADE DE CRESCER PRA SUMIR

020    MENSTRUAÇÃO E TUDO MAIS

021   MUDANÇAS NO CORPO ADOLESCENTE

022    PAIXÃO PELA PAIXÃO DOS OUTROS

023    UM MUNDO SÓ COM ELA

024    UM EMPREGUINHO PARA AJUDAR

025    UM RAIMUNDO SE AVIZINHA

026    OUTROS RAIMUNDOS NA VIZINHANÇA

027    GANHANDO SEU DINHEIRINHO

028    O HOMEM QUE QUISESSE

029    A VIDA QUE QUISESSE

030     REBELDIAS E AMOR

031   VONTADE DE FAZER TUDO IGUAL

032    VONTADE DE FAZER TUDO DIFERENTE

033    CRESCIDA, VONTADE DE FUGIR

034    TANTOS HOMENS, NENHUM HOMEM

035    QUALQUER HOMEM NÃO ERA IDEAL

036    DIA DA CAÇA, NÃO MAIS DO CAÇADOR

037    COM UMA E OUTRA POR MODERNISMO

038    RELACIONAMENTOS INDESEJADOS

039    A CULPA ERA DOS OUTROS

040     A CULPA É TODA DELA

041   ABORTO COM MUITA DOR

042    SEGUNDO ABORTO COM MENOS DOR

043    TERCEIRO ABORTO É SOLUÇÃO

044    QUARTO ABORTO FOI BRINCADEIRA

045    ENGRAVIDOU SEM ABORTAR

046    PÁSCOA, ASSUMIU A GRAVIDEZ

047    A MATERNIDADE FALOU MAIS ALTO

048    O PAI BÊBADO ESBRAVEJOU

049    A MÃE SOFRIDA ESPERNEOU

050     AS IRMÃS E A MESMA SITUAÇÃO

051   EXPULSA PELAS REAÇÕES

052    EXPULSA POR SI MESMA

053    MARIA VIRA MÃE

054    MAIS UMA MARIA

055    MARIAZINHA NASCEU GENTE

056    QUERIA VOLTAR A SER MARIA

057    QUALQUER COISA PRA SER ELA

058    OUTRO TRABALHINO NA VIDA

059    COMO SE FOSSE DA FAMÍLIA

060     A HISTÓRIA SE REPETE

061    FALSA LIBERDADE

062    SONHOS CONSTRÓEM O MUNDO

063    SONHAR NÃO É PECADO

064    TODA MULHER TEM PRESSA

065    MARIAZINHA ESTÁ CRESCENDO

066    EFEITO DOMINÓ

067    DESCOBRIU-SE FELIZ

068    DESCOBRIU-SE INFELIZ

069    O SUJEITO SUMIU

070    MÁS NOTÍCIAS DO SUJEITO

071  O CHORO DO DESABAFO

072    O CHORO DOS ÓDIOS DE SEMPRE

073    A ALEGRIA DOS AMORES DE SEMPRE

074    GENTE DO BEM, GENTE DO MAL

075    TUDO VOLTANDO AO NORMAL

076    A MÁQUINA CANSOU DE SI

 077    A DOR DO SEU MARIDO

078    NUM PARAÍSO

079    O QUE FAZER DA VIDA?

080     ÀS MIL MARAVILHAS

081   MAIS UM INFORTÚNIO

082     MAIS UM INFORTÚNIO





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Terça feira, dia 1 de Março de 2022
VOU CONTAR A HISTÓRIA DE MARIA
Bom dia, peço licença a todas as Marias, metade das bilhões de pessoas no mundo, as belas marias de todos os cantos que conosco convivem e nos fazem "mania". A história de uma, é a história de todas, a visão e a dor de algumas, é, de muitas formas, a agrura de todas as bodas. É assim que é o mundo, é como tem sido no fundo no fundo, mas elas não se dobram, de cabeça erguida, salto alto, sofrem de tudo, mas parecem gente vaidosa de outro mundo. Que lindas são as marias, como elas fazem toda diferença, como brincam até com seus algozes, sem considerar se sofrem ofensas. Aqui, desejo contar a história de uma Maria, tão bela que se acha feia, como qualquer outra, tão atraente que se vê indiferente, como outra qualquer maria neste vivência emergente.

Maria de Fátima, da Conceição, ou de qualquer outra razão, simplesmente Maria, uma das mulheres de nossa paixão. Vou contar o que não seja novidade, o que faz parte dessa nossa "improgressa" humanidade. O que esta nossa Maria é, todos nós já temos sabido, ouvido, lido, está em todos os jornais, em todas as novelas, em todas as procelas de nosso cotidiano. Peço licença a todas elas; marias, doces marias espalhadas por todo canto do mundo, em todas as cidades grandes e nos mais recantados lugarejos, estão todas por aí, até por uma providência amorosa da parte de Deus, pela misericórdia dEle para com os Seus.


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Quarta feira, dia 2 de Março de 2022
MULHER COMO QUALQUER OUTRA
Não haveria de ser diferente, falou de uma falou de todas, elas são tão parecidas, tão iguais, tão merecidas, tão fatais. Viu uma, viu todas, apaixonou-se por uma, não tem jeito, apaixona-se por todas. Maria é como qualquer outra mulher, não importa o tamanho, o peso, o mundo é todo coeso com a maneira como a vê, como convive ela, como age, tratando ou não como uma donzela. Ela se vê assim, mesmo que diga ao contrário, e busque mecanismos de maquiagem para pensar e mostrar-se como se não fosse a mesma personagem. Os homens a vêem assim, é mais uma maria, mais uma a se temer, mais uma em todo o mundo, a se querer. Nossa Maria, a de quem vou contar a história por esses dias, é o retrato vivo e completo de todas as mulheres em suas confrarias.

Todas são poesias, poemas milagrosos que povoam nossas cortesias, símbolos tão poderosos em nossas fantasias, que nos dão medo, nos apavoram, numa mistura de admiração que temos, com a inferioridade que, o tempo todo, atendemos. As mulheres, essas marias, criadas por último, depois de todos os esboços tornados vidas, são a própria divindade em carne e osso, nos dando guaridas; isso nos amedronta, nos dá medos condizentes, é o que nos fazem submissos aos bons caprichos, o quais nos fazem gente. Maria é bem assim, é tudo isto, e por tudo isso vamos mancomunar nossas fraquezas e falências para ser com ela o que somos, amargos, com todas as belas.


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Quinta feira, dia 3 de Março de 2022
NASCIDA NUM MUNDO TRAIÇOEIRO
O "aqui se faz, aqui se paga" não é bem coerente com a vida das marias, e mais ainda, da nossa Maria; o mais adequado que a existência lhe propõe, é que "aqui se nasce, aqui se apaga" como sobrevivente, isso é muito mais do que o normal, que o natural, o que faz parte de toda gente. É dessa forma que a nossa novela se esboça, que a história que vamos contar se encaroça nesse angu dolorido e sombrio que, ao mesmo tempo que choramos e lamentamos pelo que acontece, somos nós os protagonistas a realizar o que "venece", desgraçando a nossa própria vida e a do outro, até quando não merece. Se somos capazes de arquejar um mundo tão traiçoeiro para nosso dia a dia, imagine o que não somos capazes, conscientes ou não, contra o mundo das marias.

É assim que somos, é assim que fazemos este ambiente tão assustador para a existência de Maria. Desde criancinha, desde seus primeiros momentos, a vida se lhe apresenta muitos e muitos fantasmas arruaceiros, perigos e mais perigos até com parceiros, monstros que invisíveis, aos poucos vão se mostrando, ardis coviteiros que, quando na adolescência dela, já se impõem rosnando como bichos em busca de tragar a presa frágil que foram acostumando. O mundo é assim para as marias, tão traiçoeiro quanto pode ser na histeria, tão baderneiro quanto se diz que seria; mas as marias crescem, passam por todos estes perigos iniciais e não perecem, feridas aqui ou aculá, e vão em frente, mesmo que a chorar; vão vencendo os fantasmas de cada tempo premente; muitas, até que encontre o monstro que as ferem mortalmente.


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Sexta feira, dia 4 de Março de 2022
VÍTIMA DE MUITAS TRAIÇÕES
Da primeira à última inspiração, eis a guerreira a enfrentar, o que cada momento vivido traz de traição, a Maria, como as marias, é obrigada a saber, sob o peso do provável sofrer, como deve se comportar. Muitas e muitas traições irá assistir, muitas sofrerá na própria pele, outras tantas promoverá como resultado das convivências que a dor lhe sele; traições serão companheiras de todas as horas, que Maria, e todas as marias, terá, dentro do seu mundo ou fora, o que lhe construirá muralhas, e, contra tudo isto, será mestre e senhora. Todas elas pagam caro em tudo isto, com tudo isto, através de tudo isto.

Na família próxima ou distante, na escola perto ou bastante, na igreja onde o convívio será oscilante, no caminho instigante para chegar a todas estas vivências, até no trabalho quando chegar o tempo das aparências, ou no casamento com suas insistências, as marias estão sempre se preparando para a idade que for se amontoando... traições, traições e traições, "militantas" destas que vão se aromatizar em canções, em bordões, e as tantas marias irão superar, cada vez mais fortes e resistentes como heroínas a conquistar um mundo que existe para, somente, traí-las e as subjugar.


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Sábado, dia 5 de Março de 2022
VÍTIMA DE SUAS PRÓPRIAS TRAIÇÕES
Uma coisa leva a outra, o que sofre incita sofrimento nos outros, o que suporta faz entender que os outros podem, e até devem, também viver, é a lei da vida, é a lei dos mais fortes, e isto se torna argumento fatídico para se ser o que não gostaria que consigo "se fosse". É assim, consciente ou não, com todo mundo, e com as marias também, e, na história que vamos contar, Maria, a nossa doce Maria não tem de ser diferente, só que não vai fazer isto com os outros, somente, mas consigo mesma, contra si neste peleja, sua própria inimiga, a que vai lhe devorar o que a existência lhe caleja. Coitada, num mundo que lhe trai em todo tempo, lhe amargurando o que de belo poderia desfrutar, por contento, por ser mulher, por ser gente... Ela mesma se sabotará, inclusive o sentimento, lhe dando dor e decepções, uma vida de constrangimentos.

Ao mesmo tempo que Maria é lembrança de gente sadia e viva, de mente astuta que cativa, de coração materno com inclinação pro-ativa, ela se deixa ser a adversidade mais poderosa que tem a enfrentar, mas, tende a obedecer, tende a ceder, e, com isto, a se martirizar. Pobres marias, muitas talvez, além do mundo sombrio a enfrentar todos os dias da vida, desde que nascem, ainda tem de lutar contra si mesmas, contra o resultado de tudo que são e sofrem, contra os monstros que lhes são criados e alimentados pelas dores que suportam. Pobre Maria, por toda a vida será mulher, como as outras marias, com os mesmos monstros dentro e fora do coração, e, muitas vezes, os monstros que, por paixão, irão alimentar e guardar esperando ser um bom guardião.


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Domingo, dia 6 de Março de 2022
NASCE MARIA, TERCEIRA FILHA
Da casa de "seu" Raimundo, em qualquer época de escacês, pois todo tempo, para pobre, pela vontade dos governantes pelo mundo, é assim. Nasce Maria, criança angelical como toda criança; nasce em qualquer cidade, em qualquer estado ou província, em qualquer país capitalista, com toda a desgraça que o mundo ganancioso pode oferecer com sua extensa lista, de maldades. Berço pobre, pouco espaço, poucas fraudas, pouco tudo, e a menina nasce num tempo nunca programado, sem nenhum estudo, pelos pais. Veio ao mundo com "a cara e a coragem", além de recén-nascida, mulher empobrecida; veio "padecer no paraíso" antes mesmo de ser mãe na vida. Mas veio, veio e chegou, não pediu licença e apareceu; como todo mundo que chega num lugar diferente, marias chegam; pela atenção, parece até que controlam a situação, mas é engano, e com nossa Maria não foi diferente, foi motivo de mais sofrimentos e muitas limitações da sua gente.

Maria nasceu depois de duas outras irmãs, outras mulheres num mundo muito carente de mulheres fãs, mas desgraçadamente contrário a elas. A primeira maria, não faz diferença o seu nome neste arbítrio de ignorâncias já era uma pré-adolescente; a segunda maria passava de seus quatro anos, parecia mais com  a mãe, mas era quem mais lhe era contradizente. A mãe? Que diferença faz? Nem nome tem, era só a mulher do "seu" Raimundo, esse era seu nome, no fundo, no fundo. Até ela mesma já não sabia, acostumou-se nisto, acomodou-se com isto, e sem nome ficou e tem ficado, até como uma forma involuntária de rebeldia. Um homem e as mulheres que o rodeiam, tanto privilégio que a vida lhe tem dado, mas, pela ignorância herdada, e as culturas que o formatam, tudo tem perdido, nada tem aproveitado. As deusas que estão ao seu lado, atreladas ao seu nome pelo mundo que o constrange, como deusas não são tratadas por ele, como indigentes são maltratadas. Pobre do "seu Raimundo", pobres marias desse "vagabundo".


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Segunda feira, dia 7 de Março de 2022
PAI ORGULHOSO NÃO DESGRUDA DA FILHA
A "filhinha do papai" nasceu, a terceira que nasceu, e eis o tempo todo nos braços do Raimundo; o tempo todo presente, estava desligado do mundo. Se por um lado, a mãe parece ter esquecido, repetindo sua própria história de vida, e por isto, o que havia, a si mesma, prometido; por outro lado o pai parecia ser a mãe da Maria, era quem se dedicava ao papel materno, dia após dia. Era um alívio geral, todo mundo podia viver sua vida como se nada novo acontecia, a mãe aos afazeres domésticos, cada filha ao que bem lhe parecia. O "papai" era uma mãezona, fazia questão de ninguém tocar na nova filhinha querida, todos davam "graças a Deus" por tanta dedicação, mesmo que fosse a preferida.

Nada de novo, o "Raimundão" foi o mesmo com as outras filhas que chegaram; a mãe, da mesma forma, foi a mesma com as meninas que, a atenção do marido, roubaram. Dias e dias, meses e meses, parecia, o melhor pai do mundo, ser; o homem que toda esposa gostaria de ter. Cada filha foi sendo substituída pelo outra que nascia, foi assim que cada uma vivia e crescia naquele lugar. É claro, tudo isso vai marcar a vida destas marias, vai marcar mais ainda a existência da nossa Maria. No futuro, vamos testemunhar essa menina onde nasceu e com quem cresce; tudo que tudo isso está a construir na sua "prece" para ser a mulher que vai ser; uma das muitas marias que, parece, nasceu pra padecer.


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Terça feira, dia 8 de Março de 2022
PAI SEMPRE "MUITO PRESENTE"
Fazedor de "bicos" para sobrevivência, muito pouco ocupado fora de casa, sem competências, o pai, o tempo todo dentro de casa, "atenciou" a primeira maria, até chegar a segunda, num dia; atenciou a segunda até, agora, chegar a terceira que lhe sorria. A infância logo vai, nossa Maria cresce e vai se tornando mulher "quando sai"; novinha, criancinha ainda, mas com todos trejeitos femininos, angelicais. O testemunha, acompanhante, sempre por perto, com as mesmas atenções de um esperto. Quando ia na rua, por algum motivo ou trabalho como "samurai", logo voltava apressado, em cima do rasto, para estar com a "filhinha do papai". Era incrível, inexplicável, como compreender tanta dedicação, como refletir com coerências, o que se via e vivia assistindo tanta paixão.

Os dias se passavam, os meses também; e nesta mesma labuta de cuidados, atenções e prioridades, de alguma forma, todas as outras mulheres da casa dizia "amém". Não precisavam se preocupar; tinham, cada uma, seus afazeres cotidianos, femininos e existenciais para cuidar. E a crinhacinha se tornava gente, cada vez mais; de bebê no colo foi se tornando a  menininha que já engatiava no solo; e tudo parecia motivo para vibração familiar por mais uma maria que se fazia gente contumaz. O momento de tudo isto é de alegria, conforto e esperanças, como tudo está a se mostrar; mas o futuro, inexoravelmente é quem fala a última palavra, e, aí, vamos ver no que, tudo isto, por fim, vai dar.


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Quarta feira, dia 9 de Março de 2022
MÃE ENCIUMADA, INIMIGA DAS FILHAS
O mundo rodava, fora e dentro de casa; na vida lá fora, e na família "cá dentro". Tudo parecia paz e tristonha felicidade com tanta miséria, desgosto e fragilidades; maria-mãe era o próprio retrato de tudo que acontecia no coração de todos, principalmente de todas. Já não tinha marido, e com as filhas nascendo e substituindo umas às outras, sem marido continuava a ficar, e o tempo a passar, anos após anos e mais sozinha na sua dor silenciosa e decepcionante, ela ficava; subsistia a si própria, encontrando forças para vencer cada dia naquilo que seus pensamentos chamavam de inferno. Sabia que tinha ódios resguardados de tempos antes do Raimundo, e mais ódios dele e de tudo que veio depois dele. Aprendeu a conviver com toda a angústia que lhe prendia e que não sabia como se libertar. Descobriu que reclamando de tudo e de todos aumentava sua amargura, e que o silêncio, o "faz de conta" era a melhor forma de doer menos.

Não era só "o Electra" que machucava, mas sua intuição feminina anunciava em alta voz, naquele coração silencioso e dolorido, que aquele marido, como que, fazia questão de deixá-la à míngua de mínimas atenções, para se deslumbrar no contato e na dedicação inteira para com cada uma das marias que ela mesma paria com suas dores emocionais e físicas. Mas, fazer o que, homens são assim. O pai dela era assim e até demais a ponto de fazê-la incomodada muitas vezes desde que se conheceu por gente; por certo os outros homens são da mesma laia. Nesta viagem de tristeza, por um lado "tinha pena" das meninas; por outro, tinha rancor pela dor que tudo isto produz em sua alma, e, por certo, a dor que ela mesma produziu na alma de sua mãe. A maria-mãe, inimiga das filhas, como sua mãe, com ela, foi.


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Quinta feira, dia 10 de Março de 2022
MÃE BICHO QUE DESPREZAVA O PAI
No oculto da sua infância, a maria-mãe relembra com detalhes de amargor, e, inconsciente, suas emoções e sentimentos dão respostas com vigor, o "bicho" que foi sua mãe com ela mesma que lhe trai; mas, porém, mais ainda com o raimundo, aquilo que foi o seu pai. Com suas lembranças do passado, seu passado, sua infância, as comparações chegam e se instalam assim: "Os homens são assim mesmo", as mulheres, por um motivo ou outro, por uma fuga ou outra, não tem como fugir; se casam e "bichos" se tornam, pagando todos os preços de suas dúvidas, medos, fugas e anseios que nunca deixa de lhes aderir.

Dos ódios de todos os dias, o tempo todo, que marcham a sua mente, as mãos, os dedos e a boca de beijos do seu pai raimundo em seu corpo infantil, sempre presentes, tem sido o combustível para a maria-mãe detestar com desconfiança a vida, o dia, a noite, o marido, as filhas e até o Deus que professa, vez por outra, na igreja da vizinhança. Todos os dias é a mesma coisa, os mesmos ódios de si e de tudo ao redor. A vida sempre traiu esta mãe ardida; ela mesma sempre se traiu em sua dor escondida; o pai, o marido e todos os homens iguais por sua vida; e, até as filhas, também vítimas de tudo e todos, têm lhe traído as feridas. "Pobre da minha mãe, viveu e morreu com tudo isto no coração" pensa ela; pobres marias de todos os cantos do mundo, pobres marias em cada geração.


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Sexta feira, dia 11 de Março de 2022
NÃO SE LEMBRA SE JÁ AMOU O PAI
Como fica essa "mentizinha" de filha, das marias? Se precisam do "Electra" para serem as gentes que precisam ser, como ficam  diante do que a vida, pra elas, gostaria? Como podem se entenderem, se amarem, se empoderarem, se lhes faltam esta memória de um pai que deve ser amado; um homem símbolo dos homens, que deve ser atado ao homem que cada uma encontrará para, em suas vidas, ser admirado e respeitado? Os raimundos estão por aí, sendo pais destruidores destas esperanças femininas; eles estão por aí casando e descasando, traindo e "destraindo", sendo amargos para suas pequeninas. E, num dominó, os raimundos que sofrerão por tudo isto, se tornarão outros raimundos sem nenhuma dó; nem saberão ao certo, que neste baralho consequente, outros raimundos eles serão e produzirão, fomentando mais dor a tanta gente.

Como ficam esses coraçõezinhos angelicais com todo este inferno de demônios gerando demônios? Como fica o mundo com tantos raimundos capazes de matar estas "florzinhas" pelo simples anseio, em seus perfis, de atender seus prazeres patológicos de angustias acumuladas em seus passeios infantis? Meu Deus, como fica o Teu projeto de querer ver todo mundo feliz de coração, no mínimo, com a simples convivência com esta última e mais perfeita obra especial da Tua criação? Quando uma mulher não consegue lembrar se já amou o seu pai, o mundo vai sofrer, todo mundo vai pagar, muita vida vai perecer, muita relação vai amargar. Do sorriso de qualquer maria, o sol não consegue amanhecer triste; da felicidade de qualquer uma delas, ninguém, ao redor, consegue, por pior que seja um egoísta, contra outros, ser riste.


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Sábado, dia 12 de Março de 2022
UM ABUSADOR DAS FILHAS
O que pensar desse Raimundo, o que pensar dos raimundos espalhados pelo mundo? Lembrando da sua infância, a maria-mãe imaginava mil coisas, mil situações, mas tudo dentro do que sabe ser, ou entender, como feitos de homens para com as filhas em suas "judiações". Lembrando de sua infância, a maria, irmã mais velha, compreendia com lamento, que a mais nova, era mais uma vítimas nas garras que ela mesma esteve em seus sofrimentos. A segunda maria ainda não entendia, ainda não conseguia estar a par do que se livrara, no nascer da recém-chegada; fato é que a atenção incômoda que recebia, chegara ao fim como uma senha desenfreada. Ninguém tinha ideia do que fosse um abusador, nem o próprio Raimundo em seu ardor; mas não faz diferença, não faria nenhuma diferença se soubessem, é tudo assim mesmo, os homens são assim.

As atitudes paternas que incomodaram a maria-mãe, nos tempos da convivência com seu pai, se assemelham bastante com esta que suas filhas sofrem, do jeito que vai; e do jeito que sua mãe reagiu, ela agora  imita, fica indiferente, faz de contas que não vê, faz que nunca descobriu, embora a intuição feminina lhe acenda muitos alertas, porém entende que o melhor, pra diminuir as tristezas, é ficar quieta. A nossa melhor compreensão, é não ter opinião, embora os comportamentos sejam suspeitos, os indícios apontam que devemos prestar queixa e exigir investigação por conhecer estes fatos e a ocasião, não temos o direito, nem as habilidades para fazer julgamentos ou qualquer acusação. Todos nesse lugar, e nas casas de todas as marias, são vítimas todos os dias de si mesmos, dos que fizeram suas infâncias e vidas em amargas alvenarias.


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Domingo, dia 13 de Março de 2022
MARIA CRESCIA, BONITA MARIA
De recém-nascida, Maria cresceu, engatinhou, caiu muitas vezes para ficar e até caminhar em pé, e, aos poucos, um traço aqui, outro aculá, um jeitinho se delineando, e vai se tornando bela, como toda, em qualquer idade, mulher. Por um lado a vida lhe oferecia os jardins dos encantos femininos, estes que, por si só, abrem caminhos, histórias, oportunidades e desafios não muito franzinos; mas, por outro lado, e até por causa destes jardins emoldurados, grandes dragões vão lhe corroer os sonhos, os dias, a vida e a existência, sem que lhe apareçam os culpados. Quanto mais mulher ela se tornar, maior vai ser o preço a pagar, não há descontos, não há pechinchas; ela vai ter que usar, com o máximo de sua sabedoria, essa que só se encontra nas marias, todas as suas fichas. O quanto ela vencer é o tanto que haveremos ter do quanto o mundo todo irá ganhar por viver e desfrutar de cada maria no que, com luta e garra,  estão convictas a conquistar.

A esta altura, Maria chega à idade de sua irmã mais nova, quando ela nasceu. A pesar de tudo e todos, mesmo com uma família sofrida e marcada pelo sofrimento de onde nasceram, a pesar do Raimundo e dos outros que lhe foram ancestrais, ela cresce, mesmo sem muito entender o que estava a viver, sem saber se era bom ou ruim, o que era bom e o que não era, mas estava em sua vida, enfim. Não via, não compreendia, não olhava futuros, bastava o presente que era ruim, até doloroso, mas não podia conceber se havia algo melhor para se ser ou se viver. Nem lembrava que outras famílias existiam, tudo era seu mundo, aquele pai pegajoso demais, aquela mãe que parecia ser visitante em sua vida, as irmãs que pouco via e que nenhuma interação lhe favorecia; era um mundo pequeno, simples, sem graça, reduzido a brincar com uns tocos de pau que dizia ser um pai, uma mãe e um tanto de filhos, família que nunca se abraça.


14<<< >>> ÍNDICE     


Segunda feira, dia 14 de Março de 2022
NÃO SABIA O QUE SENTIA PELA MÃE
Maria já estava crescidinha, já estava virando uma mocinha, já passara de seus seis, sete anos, já abria as portas de sua pré-adolescência, já tinha um entendimento melhor sobre tudo e todos em suas essências. Do pai, mesmo com toda aquela atenção "escamosa", irritante e amargosa, já sabia bem o que sentia em sua comoção, uma vontade enorme de estar bem longe de seu beijo e de suas mãos; quanto à mãe, aquela mulher distante e sem nenhum sentido para sua vida, Maria não sabia bem que sentimentos tinha para  dedicá-la em sua lida, em sua sobrevivência em seu dia a dia como que sem guarida. Não sabia, mas a mãe que tinha, foi a avó que às suas filhas se repetia, fazendo o mesmo que de sua mãe sofreu e dela cometia. Uma vítima da outra, um corredor de infelicidades onde ninguém tem culpa, mas a culpa usa cada uma para perpetuar as dores que sabe bem aprofundar.

Na adolescência, já sabia bem o que sentia pela mãe, era mais que ódio, rancor, decepção, vergonha, uma vontade imensa de vê-la morta, porém sem saber bem porque de tudo isto, talvez porque, diante de sua dor e medos, ela parece que de nada se importa. Tinha sua vida, tinha sua própria dor, mas era mãe, era sua mãe, por que não mostrava algum interesse em salvá-la? Por que, com tanta indiferença, dos braços daquele Raimundo, não buscava libertá-la. Era a maria-mãe sofrendo na pele as mesmas reações que dispensara à sua própria mãe; ela não sabia, mas via nos olhos daquela menina, e das outras também, levada pelos sentimentos que em cada idade que vivera tão bem, experimentara em relação ao mundo e à sua mãe que lhe era esse alguém.


15<<< >>> ÍNDICE     


Terça feira, dia 15 de Março de 2022
SABIA BEM O QUE SENTIA POR TODOS AO REDOR
No espírito rebelde, essencial ao adolescente, sob medida, para romper com um status do que tem sido sua vida, e abrir, alargando espaços para um novo mundo mais seu, as marias se "debrocham" mais cedo e com mais vivacidade, a partir do que a vida lhes concedeu. Em seu caso, nossa Maria está bem ali, nesta situação que a própria vida e suas particulares circunstâncias, não lhe deixam opção. Ela só tem que ser, o que está sendo, ela só pode sobreviver do jeito que vem sobrevivendo; é uma das muitas marias que só tem uma trilha tristonha para caminhar vazia. O que tinha em si, era dor, amargura, sofrer, mesmo que nem soubesse exatamente tudo isto, mesmo que nem compreendesse todo esse seu perecer. Sabe aquela angústia da alma que você não tem nem ideia do que seja, ou do que o leva a sentir? Assim é a nossa Maria, tão bela, tão jovem, tão mulher, mas sem expressão nos olhos, sem expressão definida no que realmente quer. Pobre garota, pobre família, pobre mundo, ninguém fica de fora com as perdas que, contra as marias da vida, nós provocamos como raimundos.

Nos momentos de suas comparações, nos balanços que sempre faz com suas emoções, Maria se olha num espelho de frustrações, se descobre como ninguém, a viver como se não vivesse, como se não fosse gente, como se fosse um espelho também. Que vida tem nos olhos de sua mãe sofrida? Que vida tem nos olhos de seu pai que é uma de suas feridas? Que vida tem naqueles olhos refletidos nesse espelho que transpira essa história perdida? Odeia a si com tudo isso; odeia o mundo sem graça que a faz fazer parte nisso; odeia a mãe e o pai, odeia todo mundo, odeia todos os raimundos. Na adolescência, momento de descobrir os atrativos do sexo oposto, de começar a se embebedar com o olhar, as palavras e as atenções dos garotos, como, pela natureza, é proposto, Maria bela não consegue ter ânimo para esta poesia, embora precoce em muitos sentidos e vivências, é, pra todos, apenas, uma menina em maresia.


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Quarta feira, dia 16 de Março de 2022
NÃO SABIA O QUE SENTIA PELOS COLEGAS
Pré-adolescência na escola, cresceu e aprendeu vendo gente; adolescência na escola, cresce aprendendo, da mesma idade, com sua gente. Maria estava bem no meio daquele bolo, fazia parte de todos os rolos, muitas vezes, pelos professores, repreendida pelos erros que cometia; outras vezes, pelos colegas, pelos erros que, com eles, não vivia. Colegas de todas as histórias possíveis, umas eles mesmos contaram, de alguma forma a ela que os ouvia; outras, não contaram, mas eram tão evidentes no que falavam, vestiam e se comportavam, que era como se ela, com eles, convivia. Com tudo isso, uma certeza já era do interesse de nossa Maria; a escola era como um refúgio, um lugar de fuga, uma excelente justificativa para não estar na família, todos os dias. Poderia até não ser o melhor lugar do mundo, ela nem conseguia entender assim, mas em casa tinha seu abusado Raimundo. A vontade que tinha, maior que tudo mais, era de mudar, levar cama, roupas e outras coisas ali para o paraíso naquele lugar.

Mas, o que pensar dos "garotos" de sua sala? Um mundo de raimundos inconvenientes, invasivos e, de várias formas, também abusados; cópias fiéis, naturalmente, de seus pais, outros raimundos enojados. E suas colegas? As garotas que, por algumas, lhe fazem companhia? Não sabia muito o que passava no coração delas, a não ser o falarem de si e do que gostariam; falarem dos garotos, de sexo e do que poderiam; conversas meio vazias que mostravam nada serem, realmente, o que marcava o coração de cada uma. Mas Maria preferia não dar muita atenção a estas conclusões, qualquer coisa era melhor do que em sua casa, qualquer coisa era muito melhor do que aquela convivência e emoções. A escola era seu céu na terra que não lhe engana; o único trabalho que tinha era inventar motivos para encontrar o pessoal à tarde e nos fins de semana, mesmo que fosse na igreja do bairro.


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Quinta feira, dia 17 de Março de 2022
SABIA O QUE SENTIA FORA DE CASA
Euforia, uma certa ganância de não estar naquele lugar sempre, na alma, a lhe encarrancar; onde nasceu, cresceu, sofreu, onde ainda sofre, mas já encontra onde se refugiar. Nenhuma saudade de tudo aquilo que lhe tem sido comum, nenhum gosto em fazer parte daquele mundo mesquinho, de jeito algum. Que pena, enquanto alguns dos seus colegas faziam questão de falar de seus pais e mães divertidos, a adolescência rebelde de Maria, a convivência não avierdes de todo dia, paralisava a voz da garota, deixava seu falar bem contido. Era uma vontade de morrer para não estar lá, mas, ao mesmo tempo, uma grande vontade de não morrer, para estar cá, num mundo fora do seu, com gente fora da sua, vivendo sonhos dos outros, com os outros, como se fosse um tapuia.

Todo este emaranhado de coisas que povoam a sua carência existencial, "adolescencial" e pessoal começam a levar Maria para os escondidos, para os banheiros, para os isolamentos, para os auto ferimentos, para uma dor que lhe permitia fugas de uma pavor maior que lhe envolvia em tormentos. Tudo e todos parecem arquitetados a promover traições em sua vida, e, agora, a própria Maria está imbuída no maltrato de si mesma, numa traição invertida. Um corte leve com trejeitos inocentes, foi o primeiro que ninguém viu, mas que deu grande alívio inexplicável e conveniente. Depois vieram cortes mais profundos, sangue mais à vista naquele submundo; uma dor física e emocional, que não desejava morrer, uma dor mental e parental, que lhe dava conforto para viver. Depois dos braços, uma perna, cortes mais profundos para serem dores mais intensas; depois as duas pernas e seus ferimentos, precisava de tudo aquilo para conseguir suportar outras dores no coração, dores que faziam, cada dia, ser mais cruento.


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Sexta feira, dia 18 de Março de 2022
TUDO CONTRARIA, TUDO PRA CONTRARIAR
Que espírito ela tem, que vida a vida lhe mantém. Os dias passam, as dores parecem aumentar, os cortes aliviadores parecem dar vida às angústias que se mostram em aumentar. Maria adolescente não sabe mais pra onde ir, não consegue compreender o que fazer para não deixar seu dia a dia lhe ferir. Até a escola está perdendo aquele brilho de outrora, não é mais o lugar "bacana" pra se misturar, mas ainda é muito melhor do que aquele lugar e aquela gente que tem pra morar. Tudo parece se organizar num só objetivo, o de lhe contrariar, ser empecilho para alguma alegria, qualquer que seja, que ela pudesse saborear; assim sendo, que outra reação poderia nascer em seu coração, que não fosse o de fazer de tudo para fazer parte desta "cantação", atuar diretamente, intencionalmente para esta artimanha compartilhar, como numa só emoção, assumir, aos olhos de todos, seu interesse de a tudo e a todos, também contrariar em toda esta confusão.

Muito rapidamente, quase que num piscar de olhos, numa pressa fatal, nossa garota deixou a simpatia de todos e embarcou numa malevolência geral; a adolescente "coitada" que era agradável, na escola, a toda garotada, agora  rompia com tudo e com todos para assumir, quase que conscientemente, a postura da vilã que tinha prazer em ser malvada. Nesse ímpeto de extravasar a sua dor nos outros ao seu redor, como vento, Maria foi esquecendo de se refugiar nos cortes que seu corpo parecia pedir pra sofrer naqueles outros momentos. Aos seus olhos, agora, mas, com muita razão, menos lugares e gente ela tinha para se encontrar com seu "rabecão", e, por outro lado, pelo menos, por enquanto, sentia-se aliviada com suas dores compartilhadas, não era ela só que tinha, com muito lamento, uma vida atribulada. Isso diminuía o tamanho do seu mundo, mas lhe dava um pouco mais de saúde para suportar o ambiente familiar do seu pai Raimundo.


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Sábado, dia 19 de Março de 2022
VONTADE DE CRESCER PRA SUMIR
Nossa adolescente sobrevive a tudo que amarga seu coração e suas lembranças, sobressai dos espinhos que lhe surgem no caminho, e aqueles que ela mesma, vítima, tem produzido contra suas esperanças. No afã de engrossar o comportamento que vê ferir os olhos e a compreensão de quem lhe seja vizinho, agora embarca na futilidade, chega na promiscuidade e se desagua no resto que sobrava de seu cantinho. Maria, nossa adolescente, como muitas marias por aí, a viver o calvário que muito se sabe e pouco se busca mudar e sentir, está bela como toda moça, mas, com marcas profundas de azedume e amuação, como uma fera ferida em sua própria armação. Homens e mulheres estão, agora, em sua mira de ação, com raiva de raimundos passa a se envolver com todos que se deixem levar por sua sedução; com raiva de marias, da mesma forma, oferece-se por completo a todas que se aventurem na aproximação.

Em pouco tempo, descobre bem que precisa de mais, necessita ser mais, o espaço que ela anseia provocar com suas reações não tem se feito atingido como ela gostaria e tem sido capaz. Vez por outra, um desejo enorme lhe toma o coração, ou morrer apagando tudo que lhe fere e lhe afronta em dor e comoção; ou, por outro lado, crescer e sumir, desaparecer e fugir, ser e mostrar-se grande, com o vigor de sua paixão. Quer ser gente, gente grande para ser dona do seu nariz, sair do mundo que a oprime, lançar-se para uma vida diferente, como lhe condiz. Nem uma coisa nem outra lhe parece possível, enquanto se mostra fraca e covarde para se matar, para tirar-lhe a vida; por outro ainda é nova, ser grande parece distante, o que lhe resta, então é ser atrevida, contra si, mas, principalmente contra tudo, contra todos, que, de alguma forma, de muitos jeitos, tem lhe tirado toda guarida.


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Domingo, dia 20 de Março de 2022
MENSTRUAÇÃO E TUDO MAIS
Adolescência que não passa nunca, Maria tem pressa de sair de tudo ao seu redor, vontade de sobressair com tudo que, em si, contra si, lhe travava como anzol. Era traição sobre traição, a vida no choro cotidiano, a família no seu enojado engano, a escola com seu indiferente abano... A mente da garota, o tempo todo voando, não como por cima das circunstâncias que ela via por sua cansada alma, mas como fazendo parte de todas as agruras que lhe traziam incessante trauma. Agora, em plena adolescência, a nossa Maria está isolada de tudo e de todos na vida, está afastada do existir e até de si mesma no seu ímpeto de aborrecida; está um caco, um pedaço sobrante de vaso que tinha muito para ser belo, atraente e elegante. Mas as traições de um mundo doente, que adoece as pessoas para, também, traírem a gente, faz a vida ser o que é, amarga e sem muitas esperanças para as marias, que pagam um preço maior para serem com a gente, o que a criação nos prometeu: O melhor que a vida poderia nos oferecer para vivermos contentes.

Tem traição pior que a menstruação constante e dolorosa que a vida propôs às nossas marias? Sim, tem sim. Tudo que fere seus corações, tudo que promulga decepções, tudo que amarga suas emoções, quase tudo pode se tornar mais traidor que o compor dos ciclos que as fazem serem mães, e com isto, obterem ainda mais traições mais cedo ou mais tarde. Mas a menstruação simboliza bem todos os amargores que as nossa marias vivem "traiçoadas" pela natureza que também as enriquecem, pelas outras mulheres que também as envaidecem, pelos homens que também as engrandecem e pela própria vida que também as promovem fazendo com que tudo e todos, de muitas maneiras, estejam sujeitos à busca de agradá-las, atendê-las, e conquistá-las.


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Segunda feira, dia 21 de Março de 2022
MUDANÇAS NO CORPO ADOLESCENTE
Mais cousas estão acontecendo em sua vida, mais cousas estão amanhecendo do seu corpo, desconhecidas; a pele está parecendo que está mudando, algumas partes estão, como que, inchando; a voz está amaciando; os seios infantis estão se evidenciando; o rosto liso está "brotejando", e a garota está virando mulher, numa pressa alucinante que ela mesma não quer; mas o que já era belo por ser uma maria, como que do nada, está se "lindando" num passe de magia. Nossa beleza que fechava uma rua, agora está fechando quarteirão; mas isso não muda nada na tristeza sua; talvez, até mais dor e rebeldia está trazendo e vai trazer para seu coração. Se tornou, mais ainda, um encanto de mulher a todos os olhos; mas segue numa berlinda, sem um festejo se quer, sendo para todos um mar com seus abrolhos.

De longe um presépio completo e vistoso, encorpada; mas de perto, para qualquer um, todos concordam, uma "presepada". Maria era gente para se manter de longe no que havia, ficando perto qualquer um ficava comprometido na concepção da maioria. Isolada, ficou mais isolada. Mais bela, a deixou mais afastada. Escondida em si, mais para si ela ficou enterrada. O que adianta ser gente? O que adianta ser mulher e tão bela? O que adianta viver? Deixou a escola, deixou os colegas, deixou tudo... De novo, só lhe restou aquele pequeno e agourento primeiro mundo; só lhe restou ter que conviver com o nojento, pegajoso e sarnento Raimundo. O desespero de vida volta a assolar, mais ainda, o coração daquela nossa Maria; como muitas marias, com este mesmo itinerário ou não, com esta mesma dor de alma ou não, ela vai ter que descobrir como fazer para algo que lhe venha ser novo, diferente, algo que venha dar um outro sentido ao seu coração.


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Terça feira, dia 22 de Março de 2022
PAIXÃO PELA PAIXÃO DOS OUTROS
A adolescência não passa tão cedo, ela está bem ali, está sempre bem aí, ditando suas ordens, o comportamento que lhe seja adequado, o sentimento de quem não está bem em si. É, para a vida toda, um momento crucial que exige atitude bem fatal para imprimir reclames e, ao mesmo tempo, construção de algo mais novo, revolucionário, para o futuro, essencial. Com nossa Maria não é diferente, nunca é indiferente, a adolescência que já se imperava dos pés à cabeça, se mostra bem visível e presente no rosto, na face que, a todos, apareça. Embora uma adolescência bem particular, bem pessoal, ela é a mesma de todos, é a mesma de qualquer outra maria que possamos imaginar ou querer pensar como igual. No seu jeito isolado, decepcionado, amargurado, irritante e provocante, a garota sempre se descobre, nos outros, em imitação: Gostando do que todos gostavam, e se apaixonando pelo que os outros dava paixão. É adolescente, não tem pra onde correr.

É um vai e vem que nem ela consegue entender. Quando seu desejo rebelde se joga num propósito, seu corpo, sua mente e sua vida lhe empurra para outro triste depósito. A inconstância era sua marca de todos dias, por onde quer que passasse, por quem tivesse que, com ela, conviver, como com muitas marias. A adolescência já é muito conturbada, muitas situações intrínsecas ou não, se fazem comungadas; mas com Maria isso é muito mais complicado, se a vida já lhe é traidora em muitos sentidos atrelados, seu coração, como nenhum outro, do jeito de qualquer um outro em cumplicidade, sabe dar as ênfases necessárias para, de um pingo d'água, fazer uma tempestade. Isso é todo dia, todo santo dia, e quando acontecia de não acontecer, algo estava errado, algo, qualquer um diria, ia dar errado; tudo ela sabia, tudo isso ela tinha que aprender.


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Quarta feira, dia 23 de Março de 2022
UM MUNDO SÓ COM ELA
Sem escola, sem igreja e sem família, sem nenhuma vontade de ser ela, Maria se esconde dentro de si, dias e dias morando em seus pensamentos e e ódios, em sua própria favela. Um minuto e outro para comer ou outra coisa fazer, para um serviço ou um recado que tenha a obedecer. De manhã, de tarde e de noite, um mundo vazio que em todo o tempo, vive uma insana ansiedade para ver logo passar qualquer momento. Essa distância e angustia tem lhe salvado do Raimundo, este já não a procura com a insistência de antes, com todo aquele nojo do mundo; já entende que todo aquele ódio do pai, da mãe e de toda a casa, não se mostra mais profundo. Isso, parece, não lhe ameniza a dor que a alma lhe grita, a emergência de sua situação não parece diminuir, mas pelo contrário, ela sabe que lhe agita. Agita pra onde? Agita pra que? Tudo parece igual, tudo parece como antes, nada mudou, tudo é aquele mesmo triste buquê.

Com seus quatorze ou quinze anos, nossa adolescente está quase de malas prontas para a juventude que parece nunca chegar; sua vontade enorme de virar gente tem lhe trazido a pressa para ver o que parece nunca acontecer, só lhe fantasiar. Sem escola, sem família e sem igreja, escondida dentro de seus sonhos e tristeza, a garota se retrata como alguém sem presteza com muito mais a cobrar de tudo e todo mundo, do que mesmo a oferecer, ou a oferecer-se no intuito de melhoras para si e do seu próprio submundo. Traida, o tempo todo traída, como gente igual a todo mundo, como mulher em seu status oriundo, e como Maria, essa única Maria, dentre todas as marias, com seu histórico vagabundo. Essa adolescente é uma vida vagante, uma dor alucinante, mais morta que vigilante, nossa Maria é ninguém, alguém esquecida pela vida que reflete bem, a existência da mulher, delas, as marias, mas o quanto, todos, promovemos nossos males em não tê-las como bem aventuranças que nos mantém. Pobres de nós todos.


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Quinta feira, dia 24 de Março de 2022
UM EMPREGUINHO PARA AJUDAR
A vida se arrasta e leva as marias para os portos mais imprevisíveis que se possa imaginar; e chega o momento que um vizinho da família, alguém da igreja que se lembrou, um professor que uma "ajudinha", quis dar, indicou Maria para um "empreguinho", alguma coisa para melhorar as condições daquela gente, um trabalhinho, e veio a eles comunicar. Empregada doméstica, uma babá, um serviço simples que os patrões precisavam para poderem melhor trabalhar. Não pagariam um salário inteiro, nem poderiam oferecer outros direitos que a lei garante a um obreiro, mas uma pequena ajuda só para não ficar parada. Um empreguinho para mais uma maria, se não fosse essa, com certeza outra seria, pois nunca falta quem esteja na fila para servicinhos baratos e injustos para que os patrões trabalhem e ganhem seus salários bem robustos. Mais uma maria, vítima de uma situação que o capitalismo predador, em nome da liberdade, vai oprimir, vai extorquir, com a justificativa que não pode pagar melhor.

Com tudo isto, mais um semi-emprego informal se estabeleceu, mas a propaganda dirá que mais um trabalhador está empregado e feliz ganhando o seu. Mais uma traição para Maria, o mundo ingrato e injusto apresenta suas garras em mais uma tirania; e muito serviço vai surgindo a cada dia que lhe vai sugando, e menos humanos os patrões, pela própria cultura e sistema, vão demonstrando. Ela sente na pele a exploração que está vivendo neste arranjo, mas involuntariamente seus "donos" encontram ótimas justificativas para continuarem dormindo como anjos. Vez por outra uma roupinha velha que não se usa mais no querer; um alimento que está prestes, em sua validade, a se perder; um objeto barato que não tem mais utilidade e sobra num canto da casa a se atrever; uma coisa e outra, oferece, como muitos às marias, como um conforto para sua alma que faz, com sua vítima, o que, contra si, não gostaria.


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Sexta feira, dia 25 de Março de 2022
UM RAIMUNDO SE AVIZINHA
Aos olhos da cultura capitalista, onde "quem pode pode, quem não pode se sacode", tudo está bem, "graças a Deus, em Seu nome", a filha mais nova da família está trabalhando, um dinheirinho está ganhando, não vão mais passar fome. Tudo resolvido, a vida não é tão ruim quanto parece, aos poucos as coisa se ajeitam, porém, toda maldade, desumanidade, toda traição permanece. Além do salário miserável, do muito trabalho sendo cobrado, das horas extras que o tempo, não está sendo lembrado; dos reclames, gritos e até alguns empurrões que a patroa não conseguiu evitar; um raimundo está a despontar, um olhar assediador, um sorriso de gladiador, uns elogios de quem quer conquistar. Maria está a mercê de mais um crápula, de mais uma situação incômoda que lhe faz aumentar as raivas intrínsecas por estar se tornando para mais um, uma vítima escápula.

Nos seus quinze dezesseis anos, o que fazer? Por raiva, contra tudo e todos, como já fez antes, deveria bancar a vítima e ceder? Ou deveria, pelo mesmo sentimento amargo que tem na boca, dar um prejuízo na casa e depois desaparecer? Qualquer uma destas iniciativas, para ela, não seria difícil, seria até muito fácil com o ódio que lhe apodera; mas por onde for sempre os raimundos vão estar, por onde estiver, a vida vai mostrar que não, por nada, a considera. É pobre, é mulher, criada como pra ser sempre vulnerável num dia louco; vítima perfeita para um mundo masculino, injusto, cujo sistema existe pela exploração de gente assim, acostumada a sobreviver com pouco. Maria não sabe como responder ao que está vivendo naquele lugar, e os dias vão passando, o raimundo cada vez mais se aproximando, mostrando garras acesas, ameaçando bote certeiro quando o momento chegar.


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Sábado, dia 26 de Março de 2022
OUTROS RAIMUNDOS NA VIZINHANÇA
Parece uma coisa doentia, parece ser uma coisa contagiosa em sua patologia; quando um raimundo aparece com suas garras de bicho cambaleante e embebecido, outros, como zumbis, surgem de todos os lados, de todos os cantos com seus dotes apodrecidos. Já havia um antigo raimundo em sua vida e em sua casa, um homem, que ela não sabia bem o porque, lhe dava náusea e vômito de um medo ansioso que sempre lhe abrasa; agora, no trabalho escravo que lhe atormenta e explora, mais um raimundo, mais um infame saído dos infernos, que, ao que parece, já contagiou todo mundo. Parece que todos estão voltados para ela, da vizinhança de sua casa, pelos caminhos e passarelas, até aos vizinhos mais próximos do lugar onde trabalha suas querelas. Os raimundos estão no ar, predadores atentos às suas vítimas, às marias que lhes possam passar, como algo de uma natureza sem controle, como que nasceram para serem o que são, fazerem o que fazem, não importa a ocasião.

Todo dia Maria passa por estes vexames, mesmo quando algumas vezes mudou seu itinerário, mesmo quando mudou suas ocupações para outros horários. É sina, é "karma" de toda maria, parece que nasceram para serem abusadas, angustiadas, sofridas, perseguidas, um preço muito alto para serem mulheres, para serem belas, para serem anjos num mundo corrompido, fora de controle e ufano; um mundo que deveria ser, no mínimo, humano. Chega um momento que cansa, chega um momento que dá vontade de chutar o pau da barraca; Maria lembra que já fez isso muitas vezes, em casa, na escola, na igreja, em todo lugar que já passou; ela lembra que de nada, tudo que já fez e respondeu, que tudo que já agiu e reagiu, na verdade, adiantou. Perda de tempo, dor a mais para enfrentar e sofrer, então o que fazer? Como se espera que uma pessoa viva tudo isso da melhor maneira possível? Não sabia, ninguém sabe, nenhuma das marias.


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Domingo, dia 27 de Março de 2022
GANHANDO SEU DINHEIRINHO
É muito pouco, muito pouco mesmo, mas é seu, é uma chave que tem para sonhar o transpor as portas que a separa de ter sua própria vida; Maria agarra aqueles tostões como se fosse ouro, e imagina um novo início de vida, longe de tudo e todos, em uma iniciativa atrevida. Sabe que é pouco, mesmo para uma pessoa só, sem eira nem beira, é pouquíssimo comparado com o que outras marias ganham pelo mesmo trabalho na vizinhança do seu calvário. O que fazer? Encontrar outro lugar para trabalhar? E a gratidão por aquela ajuda que tem recebido naquele explorar? Pensar, pensar, ela não faz outra coisa e se consola, descansa na certeza que está cada vez mais perto de tomar asas e voar, ir embora. Quase nada, mas o suficiente para aquele coração pobre sentir a brisa da felicidade; o suficiente para se gastar na compreensão de que tem muita vida a viver naquela sua mocidade.

Juntando um pouquinho hoje, outro pouquinho amanhã, nossa Maria parece estar cada vez mais esperançosa, pouco está importando com tudo ao seu redor, a vida e suas muitas traições caprichosas. Tem tido menos tempo para se lamentar, muito menos tempo para se lastimar; o pouquinho que todo dia passa pelas mãos de sua contagem vai desenhando horizontes que ela nunca teve a ideia de sonhar. Viajar e ir embora, ficar e morar sozinha como carola, continuar no seu inferno e ser egoísta no que ainda não controla; muita coisa passa pela cabeça de Maria, como de outras tantas marias, basta que um pouquinho de tostão passe por suas mãos, é uma grande euforia. Tão pouco e tanta esperança, é o suficiente para a vida cometer outras traições na vida dessa gente angelical; por muito pouco elas se deixam envolver, acreditam no que aparecer, e seguem em suas torturas por uma poesia infernal. Elas sofrem muito, mas, de muitas maneiras, nós todos sofremos muito mais "infrigentes", é uma ecologia sem volta, ou o que volta é o preço das maldades que alimentamos com nossas indiferenças, ou nossos silêncios convenientes e coniventes.


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Segunda feira, dia 28 de Março de 2022
O HOMEM QUE QUISESSE
É muito claro que toda mulher percebe e sabe do que é capaz, sabe o que recebe e o que a vida lhe traz; Maria não é diferente, desde tenra idade, sabia bem o terreno que pisava e o que tinha de driblar diante de cada investida contumaz. Seu corpo, sua mente, seus olhos, sua patente, lhe dava certeza absoluta do que a mídia, as conversas, os ouvidos e os jogos que raimundos lhe armavam atrevidos, tudo lhe favorecia na ideia de que era empoderada, até quando lhe faltava iniciativa para viver essa condição que a vida e a natureza lhe dava. As formas que seu corpo assumia, que sua postura construía e que seu anseio evidencia, mostrava a mulher emergente, e ao mesmo tempo confusa que era Maria, e que são muitas ou todas as marias neste momento da vida em cada uma de sua própria lida.

De agora para adiante, como num novo fôlego comediante, aquela menina é outra pessoa, aquela adolescente já se apresenta como uma nova pavoa; e, com isto, e outros atributos que surgirão, portas se abrirão, facilidades se mostrarão, mas nossa Maria, como grande parte das marias não aproveitarão nada disso, tudo se misturará com desperdícios, perdas inconscientes, provocadas pelos contingentes de dores e amarguras que teve que sofrer, que teve que passar; tudo isto ao seu dispor e ela, e elas, não sabendo como viver e aproveitar, deixando tudo, entre os dedos, se desaguar no mesmo piscar mágico que lhe chegou de bandeja, como de um bolo, a cereja, e a vida medíocre de antes e de sempre continuar. Pobre Maria, pobres de nós todos que perdemos muito com toda esta perda dela, e delas, e mais ainda de todos nós.


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Terça feira, dia 29 de Março de 2022
A VIDA QUE QUISESSE
Existir é uma mentira, Maria reflete sobre o que vê, o que ouve, o que sente e, como toda mulher, o que o seu sexto sentido lhe dá com clareça e certeza o que quer. Todo mundo repete um mantra falso e é empurrado a viver como se fosse realidade: Qualquer um pode ter a vida que quiser, só basta desejar, se empenhar nesta verdade. Mentira, uns poucos conseguem isto sem tanto empenho, uns muitos não chegam perto, cada vez mais se distanciam, em todos os tempos. Até parece que a grande maioria prefere a miséria, pois são os que mais trabalham, são os que mais dão duro, são os mais explorados, mas são os que menos desfrutam da quitéria. E ela? E a nossa Maria? E todas as nossas marias? Sonham, criam, acreditam, choram, se decepcionam, toda a alegria que poderiam proliferar por serem o que são, por fazerem o que fazem, por embelezar a vida de todo mundo, todo dia se amarguram, todo dia se profanam.

Se não for por um jeito, tem que ser por outro; se não for pelo caminho normal, só sobrevive quem busca atalhos noutro. Uma conversa, outra conversa e as peças de um quebra-cabeça vão se armando na busca de sair do atoleiro que lhe incomoda e lhe careça. É a hora de aproveitar dos raimundos imundos que lhes são inconvenientes, é hora de pagarem caro pelas iniciativas doloridas que lhe cansam e lhes são intransigentes. Não há outro caminho, esse é o único atalho que tem diante dos olhos cansados; alguma coisa tem que ser feito como sua resposta a tudo que a vida lhe tem transpassado. O primeiro raimundo vai ser o de sua patroa, esse tem sido irritante, um louco desenfreado que tirado sua paz insegura a todo instante. Não precisará fazer nada, basta isso, não fazer nada e ele mesmo vai dar a sua guinada. Maria tem que encontrar uma solução, ela encontrou a sua opção, ela vai mudar o seu destino, ela vai sair desse desatino. Das traições que sofre, ela vai pagar com a mesma moeda, ela vai trair tudo e todos se deixando cair de paraquedas.


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Quarta feira, dia 30 de Março de 2022
REBELDIAS E AMOR
Tudo preparado para embarcar numa canoa furada, os melhores sorrisos e movimentos, os melhores olhares e andamentos, tudo ensaiado para seus planos conquistar. Mas, numa dessas estranhas coincidências divinas, Maria ao passar pelos mesmos caminhos e campinas, se apaixona por não sabe quem, um tal de alguém que lhe cruza a estrada e com voz de anjo, lhe faz cortejada, parecendo um não-raimundo, que neste terrível mundo, se fazem alguns poucos espalhados por aí. Se sentiu mulher no querer, o coração pulou pela boca e não sabia exatamente o que fazer. Seguiu sua jornada como pisando nas nuvens da sua mocidade; nunca soube o que era aquilo que estava vivendo em tanto desconforto de felicidade. Meu Deus, pensava ela, este é o momento mais feliz da minha vida, dessa minha triste lida; por favor, não deixe que tudo passe, não deixe que eu volte para minha história afligida; Te prometo o que quiser, não há nada mais importante, agora, para o que eu disser, do que ser e viver, todos os dias, esta alegria de ser mulher. E Deus escutou, e é exatamente o que Ele mais quer, para ela, para as marias, para todos que precisam delas para viverem esta felicidade todos os dias; o que, só com elas, é possível aos homens viver.

Maria se apaixonou, e isto, do seu coração, as raivas, rebeldias, maldades, e tudo que planejara para vinganças, tirou. O dia passou como por encanto, parecia umas ou outras estórias que ouviu, ou leu, ou assistiu em algum canto, onde as pessoas envolvidas terminavam felizes para sempre de seus prantos. Foi um dia se sentindo princesa, daquelas que algum príncipe surgia para livrá-la, nem que fosse de suas tristezas e conduzi-las em cavalos brancos e macios para a alegria de suas prestezas. Do trabalho, voltaria pela mesma estrada, buscando encontrar aquela mesma cantada que lhe levantou os olhos aos horizontes, aquela mesma voz e iniciativa que lhe conduziu aos sonhos altos dos montes. O dia passou rápido para o prazer que inundava seu coração, com o muito o que fazer, mas que fazia com paixão; mas o dia passou lento para sua ansiedade, o desejo ardente de terminar tudo e, de novo, viver aquele fogo ardente como uma virgindade. E chegou o grande momento, todas as tarefas terminadas, os abusos da patroa exploradora e do patrão assediador, e Maria, para o lugar céu do seu dia, marchou. Tomara que viva de novo toda aquela emoção; para o bem dela, para o bem de todas as marias, para o bem de nós todos os dias, tomara que ela seja alimentada, mais ainda, em sua viçosa e comovente paixão.


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Quinta feira, dia 31 de Março de 2022
VONTADE DE FAZER TUDO IGUAL
Nossa Maria voltou no rasto, voltou cheia de esperanças, de calor e ansiedade como uma ovelha ofegante ao pasto; sem pressa de passar, atravessou todo o lugar onde tudo aconteceu, onde seu coração emudeceu, onde sonhara como nunca na vida. Mas, mesmo com passos lentos, dando toda chance às poucas chances que sempre teve pra seus intentos; nada aconteceu, nada voltou a ser o que foi naquele andar... Na verdade "Foi um sonho que passou" em sua vida, e seu "coração se deixou levar". Com toda angústia e frustração, Maria adiantou-se, lembrou-se que era maria, não tinha por que ser feliz naquele dia. Foi mais um dia como outro qualquer que terminou como qualquer outro em sua vida, como qualquer outro de qualquer outra maria.

Num piscar de olhos, todos os armários de raiva, vingança e amargura de alma, voltaram a se instalar em seus pensamentos, expulsando qualquer esperança que pudesse lhe trazer alguma calma, e as ideias de rebeldia voltaram a poluir o seus desejos, carregavam com volúpia em frequentes lampejos, e ela sentia algum alívio com a bebedeira de rancores que lhe inspirava a todos aqueles ensejos. O dia terminou com Maria domingo, se alimentando de suas raivas e decepção: Não podia ser feliz, não podia ser ninguém, não podia, não podia, nunca deveria, esta era sua cicatriz; tudo que dela seria, outras tantas pessoas deveriam desfrutar; ela não; a única coisa que lhe restava era se amargar, era ficar no desejo profundo de fazer tudo igual, tudo que queria antes, sofrer e fazer sofrer os seus endiabrados raimundos.


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Sexta feira, dia 1 de Abril de 2022
VONTADE DE FAZER TUDO DIFERENTE
Decepções e tristezas passam, embora deixem um amargor azedo e permanente na boca; Maria sabe bem como é isto, já tem uma vida vivendo e sobrevivendo com esta toca. Já está tão acostumada, que no outro dia nem lembra, parece que nada aconteceu, parece que nada lhe amargurou ou entristeceu. Indo para o trabalho de todos os dias, nem lembrou de passar pelo mesmo lugar da alegria; seguiu seu caminho rumo à exploração, à migalha que receberia como se fosse qualquer outra, de tantas, marias. Nesse ínterim, renovando os azedos da alma, já não se inspirava em ser e fazer tudo igual, do jeito que seus intentos, antes,  lhe  propunha como calma... A vontade era de fazer tudo diferente, sendo crítica de seu tempo e momento, como qualquer outra gente; a vontade era descobrir o que fazer, para quando fazer, não ter que pagar mais preços, não ter que mais sofrer.

Voltar a estudar? Outros lugares deveria frequentar? A igreja talvez, fazer novas amizades, em alguma coisa se profissionalizar? Um monte de ideias possíveis e impossíveis recaia na mente de Maria; enquanto ia ao trabalho, durante ele em seus afazeres, e na caminhada de volta, fechando o seu dia... O que fazer? O maior sofrimento daquele coração, não era só a vida que tinha de enfrentar no cotidiano, mas o não vê solução; o não encontrar caminhos novos que a tirassem daquela tempestade em furacão. Entrou a noite, sem sono, Maria chorava sua dor, lamentava tudo e todos que pareciam, de sua vitalidade e juventude, um sugador; a mais infeliz das mulheres. Tão linda por ser tão mulher, mas tudo insuficiente para ela ser o que quer, e com isto, com tudo isto, a noite passa, a adolescência vai se esvaindo, a vida vai seguindo, e a nossa Maria, com sua visão angustiante, vai participando da pintura em cores mortas, o mundo que nos envolve, o mundo que formamos, o mundo que com elas deveria ser extasiante.


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Sábado, dia 2 de Abril de 2022
CRESCIDA, VONTADE DE FUGIR
Nos seus dezesseis dezessete anos, Maria já é outra, embora seja a mesma maria do coração pesado, gente dolorida que gostaria de ver o tempo apressado, sempre com a ideia de sair de onde está, para na outra margem, de qualquer outra coisa, poder chegar. Mais uma vez é tomada por uma vontade enorme de largar tudo e ir embora, enfrentar tudo e todos e cair mundo a fora, sem dar satisfação a ninguém, sendo de sua vida, a senhora. Planejou umas três vezes, tirar um tempo antes de dormir, arrumar suas roupas e no outro dia, bem cedo, sumir; dar corda aos seus anseios de voar, ser como uma gaivota, sem hora nem lugar aonde chegar. Mas chegou o dia que faria tudo que precisava fazer, houvesse o que houvesse ela faria o seu querer; e assim foi, arrumou tudo antes de dormir, chegou a sonhar com lindos portos onde haveria de chegar e sair; não queria fincar raízes em lugar algum, era para ser livre, não ser presa a ninguém e a ocaso nenhum.

No outro dia, quando se descobriu, estava por caminhos que nunca andara; era tudo novo, gente nova, cores novas, até fora de sua cidade estava. Sentou-se, admirou-se de ter chegado até ali, agora tinha que organizar seus próximos passos naquele seu fugir. Contou de novo o dinheiro pouco que tinha entre os dedos da mão, olhou ao redor, cada casa e lugar que estava diante da sua visão, e dentre tudo que viu uma, duas, três vezes, aparece como uma divina solução: Uma igreja, um templo simples, mas uma porta aberta a uma maria que tanto almeja, encontrar-se, fazer-se gente, ter sua vida, como qualquer maria em suas próprias pelejas. Na sua adolescência, naquela comunidade que frequentou, muitas vezes viu situações e pessoas que a igreja ajudou; agora, parecia, ser a hora dela, a vida dela, o sonho que Deus aparelhou.


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Domingo, dia 3 de Abril de 2022
TANTOS HOMENS, NENHUM HOMEM
Longe de casa, longe da sua vida, daquele vida, longe do seu mundo; não imaginava o quão longe estava de tudo, principalmente daqueles seus raimundos. Maria foi acolhida como nunca, recebeu tapetes vermelhos como ninguém; era um outro planeta que chegava, era ela que chegava também. Parecia que tudo ao seu redor tinha mais cores, parecia que, eram mais vivas, aquelas flores; era como se tudo brilhasse pra ela lhe dando novos e melhores sabores. Com uma semana, parecia que até os homens não eram raimundos, até os sorrisos e olhares que recebia eram mais profundos. A nossa Maria parecia estar sonhando, a antiga vida amarga parecia estar se ofuscando, a nova existência lhe dava marcas de que estava se desenhando. Parecia não ser ela, parecia que nada vivido antes era com ela... Inventara uma história louca para aparecer por aquelas bandas, encontrou a inocência religiosa daquela pequena igreja em suas demandas, e tudo parece estar se encaixando, lhe dando novas portas, lhe bandejando novas varandas.

Passados os tempos da lua de mel, dos encantos que a alma dela viveu num novo mundo sem Babel, a beleza de Maria, como em todas as marias, como se quer, com a simplicidade de alguém que nunca viu motivos para promover as vaidades salutares de uma mulher, passou a atrair todo tipo de gente e todo tipo de atenção, todo tipo de carinho e todo tipo de paixão; os raimundos se aproximaram, não foram poucos os que se empolgaram, e as traições da vida, pouco a pouco se voltaram, e a nossa Maria está, de novo, vulnerável. Mas, também, encontrou mães, encontrou irmãos, encontrou uma família para lhe dar as mãos, uma força a mais, bem diferente de antes, para suportar as contradições doloridas que lhes seriam constantes. Gato escaldado tem medo de água fria, era que angustiava o coração temeroso e assustado de Maria, era o que inspirava tanta coisa mais fácil e cuidadosa, tanta alegria carinhosa em tudo aquilo que, agora, vivia.


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Segunda feira, dia 4 de Abril de 2022
QUALQUER HOMEM NÃO ERA IDEAL
Dias passaram, semana recomeça, Maria na casa de alguém, morava na casa de outro alguém; a conversa cultural de que não temos como pagar, estamos lhe ajudando, queremos o seu bem; compensado pela dormida, comida e vestuário que estes e outros lugares lhe proporcionava no que convém. Um jeitinho aqui outro acolá, mocinhas e senhoras foram dando pitacos e nossa Maria deu a se arrumar. Já era uma mulher bonita, mais bonita foi ficando com tantos pitacos, como se fosse uma obra de arte a muitas mãos, e nisto, qualquer das marias vai avolumando esperanças no coração. Era mulher, era gente, tinha o que comemorar naquela tangente; aos poucos estava Maria num outro trabalho até ganhando de maneira um pouco mais decente. Continuava frequentando a igrejinha, até pela gratidão  que queria demonstrar e tinha; longe de tudo e todos que, por toda uma vida, lhe atrasou naquela vidinha.

Lembrando que gente é gente, não tem como fugir do que foi e viveu, Maria é a mesma Maria, mesmo estando nas maiores alturas, como qualquer maria, foi nela mesma que, de novo, se converteu. É como acordar de um sonho fora da realidade, e que quando se acorda não há como fugir de qualquer verdade; Maria acordava, a maria que povoava seu coração se debrochava e as lembranças, os rancores e as decepções num só piscar de olho que se mostrava. Homens, todos os homens se fantasiaram de raimundos; mulheres, todas as mulheres se enfeitaram de marias-mães no seu confuso. De dentro pra fora, ainda bonita, bem arrumada, a nossa menina crescida se conturbava, dizia em gritos silenciosos o muito que, na vida, lhe perturbava. Uma carência enorme de promiscuidade atormentava a sua mente, raimundos se faziam vitais para sua existência emergente, e Maria, mesmo sem querer, foi se afastando de tudo e todos que lhe abriram portas; e, mesmo com a insistência deles, foi se esvaziando dela mesma e de tudo que lhe dera tanto, para trilhar estradas, mesmo aquelas que lhe pareciam tortas. Maria, de novo, foi traída; dessa vez, pela maria passado que não lhe deu nenhuma saída.


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Terça feira, dia 5 de Abril de 2022
DIA DA CAÇA, NÃO MAIS DO CAÇADOR
Com mais de dezessete, mas vivendo e se dizendo com mais de dezoito anos, aquela menina sofrida e amarga é uma mulher, aos seus olhos e à vista de todo mundo... É o que ela quer. Com um trabalho, mais ou menos legal, de salário indecente como o ordenado na lei, porém totalmente imoral; Maria é dona de sua vida, já está pagando pra viver, comer, dormir, vestir, como outros, já paga por sua sobrevida. Atendendo ao coração, sem ter que dar mais, a ninguém, satisfação, se larga na busca da promiscuidade que sempre desejou em resposta à vida, contra ela, em toda sua traição. Um orgulho duvidoso surgiu nos lábios desta maria: Estava saindo do tempo do caçador e embarcando como caça em seu dia. De manhã, de tarde ou de noite, como podia, a nossa menina crescida sofrida, oprimida por uma história dela, mas tão comum às marias, no tempo que lhe sobrava do trabalho, ou até quando faltava a ele como mania, era buscando, provocando, ganhando e se dando a quem mais fácil aparecesse, e bem lhe parecesse, fazendo uma mistura sui generis de prazer e angústia, satisfação e rancor, realização e decepção, volúpia e dor.

Nossa garota, com tudo que lhe vivia, não ser mais a vítima dos raimundos, era o que ela sentia; agora era o próprio raimundo, mais do que Raimundo, sem dó, sem pena, sua vingança estava posta, sua vingança estava na arena, tinha que ser para todo mundo ver, um jeito rebelde de contradizer o que antes lhe feria e a vida mostrava-se a condizer. Todo dia era uma ou duas vinganças a realizar, ela só se sentia bem quando provocava para mostrar, mesmo a ninguém, mas que a vida pudesse sofrer um pouco ou muito do que ela ainda sentia lhe machucar. Aos poucos ela percebia que era uma luta de todo dia, era um roteiro que por dentro lhe ardia, e que não parar ou diminuir a tenção ela não podia. Tinha que ir até o fim, até compreender que fez o bastante, e que neste emaranhado que lhe seja constante, sua vingança, contra a vida, contra tudo e todos seja um agradável montante, mesmo que tudo lhe traga o que possa lhe parecer mutante.


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Quarta feira, dia 6 de Abril de 2022
COM UMA E OUTRA POR MODERNISMO
Quanto mais se vingava, mais vingança ela queria; quanto mais ofendia o mundo, mais ofensa ela oferecia, e nisto, ia se dando, cada vez com mais anseio, mais ainda quando a si dizia. Mas chega a hora que precisa mais e mais, ir além das fronteiras que chegou; na busca de novos prazeres e agravos maneiras mais agressivas de injuriar, ela se lançou. Umas e outras já sempre estiveram por todos os lados, oportunidades e atrações já se mostravam em todos os prados, e, agora, chegou o momento de se aventurar, descobrir como é, o que há, o que vai acontecer já que tudo se pronuncia sem limites a se viver. Arriscou um primeiro olhar adequado, um primeiro sorriso amineirado, e sentiu que tudo estava se encaixando, e nesta onda se deixou levar, como principiante se esgueirando. Uma, duas, três vezes com outras marias por aí, a nossa menina crescida já se mostrava iniciada em seguir; tinha seu gosto, tinha seu prazer, no mínimo o diferente se mostrava interessante a lhe atrair.

Uns e outras, ou outras e um, Maria se promiscuidava sem dor de amargo nenhum; era o que seu coração pedia, é assim que ele se alivia, enquanto, ao mesmo tempo, lhe trazendo outra alegria, contra o mundo e seus raimundos, contra tudo e todos que está posto, ele e ela os ofendia. Traída pela vida, era o que sua alma lhe afirmava; agora, a própria Maria está agindo, mesmo sem saber ou entender, contra si, enquanto se enturmava. Nesse tempo de vinganças contra Deus e a existência, contra o planeta e a continência, seu coração sofria menos ódios, menos rancores, menos anseios de guerrilhas às resiliências; e a nossa amiga, mesmo dormindo menos, dormia muito bem, como anjo em sua reverência. Dias, meses, um dois anos nesta vida, parecia que já tinha séculos vivendo assim, existindo como uma preterida, mas cheia de vontades, prazeres, e uma vivência mal correspondida.


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Quinta feira, dia 7 de Abril de 2022
RELACIONAMENTOS INDESEJADOS
O feitiço contra o feiticeiro é a melhor expressão a se resumir a vida que nossa menina começou a colher; as situações que passou a lhe vir, mostrava o preço que tudo aquilo seria capaz de lhe cobrar para daquilo viver. Muita gente que passava pelos dias de suas aventuras, muitas mentes e frangalhos que brotavam em suas travessuras, arrastavam Maria para um precipício amargo e mais enfermo do que ela gostaria ou imaginava naquelas diabruras. Tanto ela buscava novidades em tudo que já estava vivendo, em tudo que já estava sofrendo, não se contentava com os prazeres desprazerosos que estava percebendo, quanto suas vítimas, aproveitando da ferocidade inocente de suas ânsias emocionais, encontravam nela espaço para experimentos esdrúxulos que satisfizessem suas gulodices infames e irracionais. De caçadora dos outros, dos raimundos de sua vida; Maria se tornou vítima de si mesma, a mais culpada do revigorar de suas feridas; mais uma vez sofria na pele o preço do troco que dava para o mundo que lhe cobrava caro com sua sobrevida. Quem traía quem? O mundo em relação a ela? Ou ela em relação ao mundo? O mundo em relação a si, pelo maltrato que dá a estas belas e angelicais marias? Ou estas que, com tanto poder pelo que são, não conseguem viver, como devem, tanto poder que sempre tiveram e sempre terão?

A duras penas, nossa garota vai descobrindo que aqueles que são raimundos, o são quando predadores ou vítimas, quando são buscados ou buscadores, qualquer que sejam as ondas marítimas; e ela os teve aos montões. Na mesma sorte, as marias que lhe passaram aos encantos, nada mais eram que resultados de raimundos que sofreram, cada uma em seus cantos; eram repetições iguaizinhas de sua história, eram vítimas, como ela, que em vinganças acreditavam  estar em simulações predatórias. Descobriu-se, de novo, enganada, todas estavam ludibriadas; todos eram vítimas de si mesmos, embora não soubessem disto, sem que pessoa alguma estivesse desconfiada. Mas como sair disto? Como findar o começado, esta situação já tão enraizada? O cansaço que sentia naqueles relacionamentos indesejados, não se faziam suficientes para abandonar aquele barco inconformado; Maria se debatia em tudo isto, queria, mas não sabia como se debandar, como se livrar, como se resgatar pra o outro lado. Quem com ela dormia, não tinha por que se preocupar com as dores que ela mostrava, por que assim também ela agia em relação aos que com ela pairava; e os dias passam,  nessa intensidade de relações, e a nossa menina, vítima da vida, do mundo e de si mesma, vai sobrevivendo neste lodo de comoções.


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Sexta feira, dia 8 de Abril de 2022
A CULPA ERA DOS OUTROS
Maria é gente como a gente, bem como as marias que por aí se vão, por mais culpas que tenham e provoquem, as culpas sempre serão dos outros, por todo este mundão. Adão fez assim com Eva, ela fez assim com serpente, esta mais sincera e verdadeira que os dois, saiu às pressas, levando as culpas dos outros, pela tangente. Desde que nasceu e caiu nas mãos maliciosas do pai, como as marias em cada caso que se trai, a vida tem sido reclamar, tem sido armar aos outros a culpa pelo que fazem, e até mesmo pelo que deixam de arcar. Em sua trajetória suja, promíscua e ofensiva, nossa menina crescida tem se justificado nessa síndrome fácil, até injusta e nociva; e portando esta desculpa que lhe dá álibi guerrilheira, ela continua sua marcha predadora, mesmo sem saber como voltar atrás neste incômodo interior que mal lhe cheira.

Tudo na vida leva uma culpa de fundo, todos que lhe surgem com amor ou com o asqueiro dos raimundos; mas Maria segue em frente, ou, como em muitos casos, é empurrada pois atrás sempre vem gente; não há como ficar onde está pois faz parte da existência ser levado, de um jeito ou outro, pela onda contingente. Para ela, até como boa justificativa para aceitar-se não conseguir abandonar aquele barco de prazeres sem mais nenhum sentido, todo mundo tem uma dívida com sua dor, todo mundo tem um preço a pagar por seu sofrimento eterno e contido. Uma máquina movida a ódios e decepções, é a nossa Maria; um poço de energias auto sabotadoras que se emerge com avidez, qual uma grotesca bateria; uma mulher sofrida que não consegue ver outra solução, a não ser, fazer sofrer todos tudo e todos que lhes fazem sofrer, ou não.


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Sábado, 9 de Abril de 2022
A CULPA É TODA DELA
O mundo é ruim, ele é muito ruim, os raimundos estão por aí, há gente de todo tipo com os mais variados assédios, homens e mulheres cheios de artimanhas, agindo contra si e os outros como seus remédios. Em cada esquina um perigo diferente à espreita, leões por todos os lados para serem mortos, cada dia, como para, a sobrevivência, a melhor receita. Maria está nesta muvuca que a atraiu, que tem levado a trair-se, que a tem fritado em pururuca. Reclama de todo mundo, e quanto mais reclama pelos cotovelos, mais se afunda, mais se afasta dos seus, em sonhos, modelos. Se autoflagela o tempo todo como sua inimiga sem dó, busca descansar em culpar tudo e todos que estiveram e os que ainda estão, ao seu redor. Mas a culpa é dela, é toda dela, vez por outra cai em si e descobre essa "ciladela", tem sido sua inimiga.

Não é a primeira, nem a última a viver, sofrer e enfrentar esse mundo, como ele é; outras marias pagam o mesmo preço, e tem delas que até preço maior tem pago sem querer. Nem por isso muitas delas tem cavado a sua sepultura cotidiana, há até as que tem feito pontes para não cair nas covas aleatórias que se lhes aparecem atraindo às levianas. Por que ela não poderia ser uma destas evasões? Que "karma" ela teria que lhe impede de superar-se, e sair de suas próprias cavações? Sim, tem culpa; pode ser até que seja vítima, pode ser até que situações culpadas lhes sejam íntimas; quem sabe, até destino exista nesta baranga, torturas existenciais que lhes obriguem a não conquistar seu ipiranga. No entanto, seu maior pecado, não é chegar ao que chegou, não é amarrar seu burro na árvore que plantou, mas é refletir tudo isso, até ter convicção  desse seu estado, e não ter forças, como gozo secundário, pra deixar tudo que se lhe afundou. Esse é o maior pecado de nossa menina crescida; sabe bem de tudo isso, mas, no fundo, no fundo, não quer sair dessa vida empobrecida.


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Domingo, 10 de Abril de 2022
ABORTO COM MUITA DOR
Numa das peripécias da nossa menina crescida, ela engravidou, os sintomas ela não percebeu como gravidez, só quando as marcas se fizeram aparecidas, só quando cada sinal se mostrou. Seguiu um conselho, não deu certo, seguiu outro, também, não; desesperada com sua realidade, se colocando na contramão, chegou a qualquer uma buscando uma rápida solução, entregou-se de corpo e alma, não via mais o que fazer, precisava daquela contravenção. Deixando aquele lugar funesto, que cheirava morte e um inexplicável travor, Maria saiu agradecida, mas não sabia dizer o porquê de tanta dor. Havia a angústia física pelo tratamento e extração a que se expôs, mas a angústia que mais doía era a da alma, esta a todas se sobrepôs. Foi embora, prometeu a si mesma, ao seu coração e dor, que nunca mais voltaria àquela lugar àquele amargo matador; foi pra sua vida, foi continuar a viver a sua própria lida de maria escondida.

O tempo passava, a dor se mantinha, não mais a dor física, mas aquela que lhe incomodava na pouca alma que tinha. O tempo passou e, como cão que volta ao seu vômito fedido, a nossa menina querida e crescida, sem saber como cumprir o prometido, mantinha-se, como escrava cega e entediada, na promiscuidade vingativa e esclerosada, como um dever maldito a ser cumprido. Vivia tudo sob o choro, lágrimas que corriam mesmo quando nem lembrava daquela dor, mas marchava rumo ao nada, como soldado tolo empatriado que dá sua vida para proteger o patrimônio do seu explorador. Maria era símbolo de tudo que não queria ser, ou pelo menos pensava muitas vezes assim; mas, sem dar satisfações a ninguém, fazia questão de manter-se contra o bem, como vingança inconsciente qual a energia carmesim. Quando sairia disso? Nunca. Mesmo que no coração ela pretenda, compreendendo a sua espelunca, o canto da sua voz, pra ela mesma, e pra todos que com ela se encanta é que ela só sai disso no "dia de são nunca".


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Segunda feira, 11 de Abril de 2022
SEGUNDO ABORTO COM MENOS DOR
O primeiro aborto é passado, a dor dele, e por ele, é passado também; nossa garota está nova, como se nada tivesse acontecido naquele porém. Aos poucos a vida de antes se volta ao normal, Maria, cada vez mais, se entrega ao que lhe parecia e determinava como real; as coisas passam a se encaixar como outrora, em seu habitual. Um dia com um, outro dia com outra, esta vida-maria se mostra escrava, sem o poder de ser quem deseja ser; apenas segue obedecendo instintos vingativos que ela nem para mais para buscar entender. Numa mistura de ódios e prazeres, de pódios e fazeres, seus passos não conseguem deixar de cumprir o que parece deveres. Entra dia e sai dia num frenesi, que fora de qualquer controle, até mesmo para aquelas promessas no "abortuário", tentar cumprir; a nossa Maria se descobre, de novo, engravidada por não sabe quem, e quase todas as dores voltaram com o pavor que isto lhe trouxe também. Tudo de novo, era o destino do momento; todas as angústias e limitações que voltavam às energias de seus pensamentos.

Passando por tudo de novo, sofrendo de um tudo como renovo, chegou o momento do segundo aborto se fazer. Todas as promessas feitas a si e à vida foram jogadas por água a baixo, naquela maca, naquele lugar, naquela situação, lá estava ela de novo, baixando o seu facho. Tudo passou, e no balanço feito, o preço foi menor, com menos dores, com menos pavores, com menos incômodos, Maria saiu porta a fora daquele lugar com quase nenhum choro, pronta pra vida, para aquela vida tão atrevida que não lhe fazia bem. Traições por traições, mais uma que ela fazia acontecer contra si, e, portanto, contra o mundo e contra todos nós; pois na sistêmica que nos embolamos, a pétala que cai dessa flor faz muita diferença no ambiente ecológico que sonhamos. Mas a nossa garota segue em frente, o mundo segue patente e todos nós inventamos jeitos de seguir contentes; perdemos o tempo todo e brincamos como crianças em chuvas de desagrados emergentes.


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Terça feira, 12 de Abril de 2022
TERCEIRO ABORTO É SOLUÇÃO
Em dias fastos e dias nefastos, nossa garota crescida segue seu caminho de vinganças e desilusões; se deixa levar por esta estrada esquisita de confusões, e não sabe ao certo se é a caça ou o caçador em suas agruras e emoções. As decisões que toma não são viáveis à sua condição, sua mente condicionada não enxerga qualquer tipo de libertação; é escrava de si mesma, serva fiel e angustiada de seus caprichos, embora tais caprichos nem dela mesma nascem ou são. Está numa encruzilhada num modo de dizer, pois na verdade é uma encruzilhada de uma só opção no que ser, e no que fazer. Maria dorme acordada e vive como se dormindo está, chora sem lágrimas, sofre sem dor, não compreende quem é, nem onde pode chegar. Mas, com tudo isto, não deixa o osso, não abandona a história que a fere como um fosso; não consegue ser ela, não consegue ser o que gostaria de ser, a vida promíscua que tem parece ser ela própria, o ar que respira pra viver.

É nesta luta cotidiana e incansável que nossa menina crescida se descobre grávida mais uma vez; parecia um castigo reincidente para alguém que não sabe como livrar-se de sua sina de estupidez. Tudo de novo, tomara que seja menos complicado, como na última gravidez. E, foi o que aconteceu, em pouco tempo, sem ter o que chorar, sem ter o que dizer o que sofreu, o aborto foi feito, ela já era paciente confortada em emoção, e o procedimento libertário se mostrou como ávida solução. Num instante que estava como ficou, tudo se solucionou e, de novo, Maria se punha a repensar quem era, o que fazia, a vida que levava e tinha, o que esperar e sonhar de um futuro próximo no mundo que existia; e como sonhar com tanta dor de si mesma, e com tanto ódio que ainda nutria.


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Quarta feira, 13 de Abril de 2022
QUARTO ABORTO FOI BRINCADEIRA
... E, mais uma vez, como uma corda de relógio que não faz nada parar no tempo, Maria se descobre grávida, mais uma dificuldade e traição que a vida lhe prega para sofrimento. Parecia uma coisa de outro mundo, por mais que se precavesse, tubos e tubos de preservativos não parecia suficientes para estes episódios de fundo. Teria que se reorganizar, de novo e de novo, para viver este batente; era sua história mal contada, mais uma agonia refratada que não tinha nada de comovente. A mesma situação, a mesma condição, a mesma abortadora, os mesmos perigos de infecção, e a nossa menina crescida venceu mais um vexame, mais um momento de gravura, o que até pode-se dizer de bravura dentro dos mesmos reclames. Saiu de novo, mas voltou de novo, para a mesma vida, esta que ela não consegue abandonar, não consegue se esquivar, e nem ela mesma sabe, embora queira, que motivos lhe faz tão serviçal pra nisso ficar.

Novas roturas, novas decisões; velhas vontades e velhas imprecações; um, dois e três dias passam, outros também e a nossa Maria não consegue deixar de ser ninguém. Vez por outra lembra do passado, da casa, a família e aquele Raimundo indigesto; como estão, o que fazem, o que sofrem, uma curiosidade mas sem nenhuma importância para seu próprio manifesto. Sua escola, aquele pessoal interessante que já havia lhe dado muita alegria infantil. Aquela igreja do bairro, aquela gente, aquelas músicas, suas estadas por lá, momentos que até lhe deram sensação gentil. Como seria se tudo fosse diferente, quão diferente tudo seria se não fosse o que é, o que sofre, e toda traição que vive; nossa criança sofrida se debate em suas lágrimas enxutas e silenciosas, mas sem forças em si para alcançar, atender ao que a própria vida lhe apresente, ou lhe incentive.


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Quinta feira, 14 de Abril de 2022
ENGRAVIDOU SEM ABORTAR
Pensa que não? Maria engravidou de novo, parecia que o destino não dava trégua; e, mais uma vez, oi ela de novo, foi onde ela amarrou sua égua. Descobriu-se assim, e, desta vez, sabia quem era o pai, um dos Zé Ninguém que ela, com muita facilidade sempre atrai. Arquitetou-se, como das outras vezes, para, o mais rápido possível, tirar aquela criança; não se preocupou tanto pois já tinha Know how, já tinha toda necessária confiança. Tentou buscar aquela ajuda de outras vezes, não conseguiu, não deu certo; buscou de novo, do mesmo jeito, não aconteceu, não chegou nem perto. Mas não tinha o que se preocupar, essas coisas podem acontecer, mas na terceira tentativa, e na quarta e quinta, ela ficou na mão, ficou só no querer. O que estava acontecendo? Estava ocorrendo mais uma traição? A vida estava lhe pregando mais uma peça, lhe deixando apavorada e sem chão? Pensou, pensou, lhe pareceu que as portas estavam fechadas; buscou conselhos para medicamentos populares para esta situação, chegou até a comprar e ganhar, deixou-os bem a vista para não esquecer de tomá-los de antemão. Os dias passaram, uma e duas semanas desse jeito, a nossa Maria se descobriu com dificuldades de ser e fazer o que sabia e lhe ardia no peito.

Não era mais a mulher de antes, foi então que assumiu que iria viver tudo aquilo que a vida lhe outorgava; abriu a alma, deu meia volta no que era, e num piscar de mágica, nossa menina se tornou mulher, o que seu coração mandava. Seria mãe, com pai ou sem pai ao seu lado, seria mãe de uma criança; mas como ser mãe na vida que levava, no troca troca que nem ela entendia tanta variança? Bom, a decisão está tomada, de agora em diante é descobrir quais os passos a serem dados nessa direção engomada. Falou com uns e outros, até para frear mais o comportamento promíscuo e fugaz; ganhou uma roupa e outra para substituir a que não ia lhe cabendo mais; e aos poucos a mulher estava inteira trazendo em si uma nova vida que lhe dava significados do que era realmente capaz. O espírito materno lhe fazia outra, os hormônios fraternos lhe fazia marota; e a nossa menina crescida se mostrava numa vivência noutra.


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Sexta feira, 15 de Abril de 2022
PÁSCOA, ASSUMIU A GRAVIDEZ
A Páscoa chegou, mas não significava nada para a nova mãe do mercado; a cidade pouco agitada, quase vazia, todo mundo recolhido em casa ou no fim de semana longo e festejado. Foi no dia assim, quando Jesus morria no relato histórico, que nossa Maria, enfim, tomou a decisão definitiva de ter aquela criança e, com isto, sentir um entusiasmo inexplicável e eufórico. Já tinha tomado esta decisão antes, muito antes, assumiu as mudanças de seu corpo que foram constantes, mas, agora, tomava a decisão, não apenas de parir, de deixar esta criança nascer, mas, também, e de forma muito contundente, ser mulher suficiente para, como mãe, melhor que a mãe que teve, assumir. Naquela Paixão de Cristo, durante a dor da sua morte, a nossa Maria virava mulher, tomava pra si o preço da sua sorte, abrindo mão de sua alma, ser um verdadeiro anjo maternal até quanto seu limite suporte.

Na compreensão da nossa mulher assumida, parecia que os céus estavam ouvindo suas decisões em prece, pareceu a ela que o dia estava mais claro e vibrante, desses que até a alma aquece; ninguém estava pela rua, não encontrou ninguém durante todo o dia, era ela e suas reflexões, ela e suas decisões, ela e o desejo de atender, com muita atenção, seu novo coração em fuga de suas antigas prisões. Nesse dia, o dia foi mais longo, a noite demorou mais de chegar, e quando chegou, também ela demorou muito de findar. Talvez o dia mais longo de sua vida, passou mais tempo sorrindo consigo e sobre si, do que nas lástimas de todos os outros dias como em rincões entre os que só sabem se agredir. Foi dormir muito diferente da mulher que acordou na manhã que o sol abriu, carregou para os seus sonhos toda uma esperança de se tornar quem sempre quis mas não conseguiu. Jesus já estava morto, a esta altura, mas ela muito viva, muito acordada e ainda muito mais disposta a, uma criança, dar vida.


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Sábado, 16 de Abril de 2022
A MATERNIDADE FALOU MAIS ALTO
Sem entender bem o que se passava, o que lhe acontecia, tudo que se lhe mostrava no que vivia, nossa Maria se deixou embebedar com a sua nova condição, a maternidade que que se instaurava em seu coração, a nova vida que se despontava num futuro-agora, e que, de poesia e sonho, está lhe dando esperanças e até uma energia nova que lhe revigora. Dentro dela trazia outras perspectivas, crescia na sua pessoa, alguém que estava lhe trazendo outras caminhadas assertivas. Podemos até dizer que a nossa mulher  assumida está em transformadora euforia, levada por um apetite de otimismos e de compreensões que estão lhe trazendo muitas alegrias. Está, com isto, irradiando todo seu ambiente amigo, todas as pessoas que cotidianamente estão lhe servindo de abrigo; Maria está vivendo momentos angelicais, a maternidade está lhe dando uma beleza não só exterior, aos olhos de todos, mas lhe libertando de raivas e decepções radicais.

Chegou uma situação, que revendo seu coração, levada por todo tipo de perdão que poderia sentir em relação a tudo e todos, Maria resolveu voltar para sua casa, sua família, compreendendo que, como ela, o mesmo acontecia com sua gente, e que por ela, ansiosos todos a aguardavam em vigília. Juntou dinheiro, pediu ajudas, juntou os panos e foi embora. Todos conhecidos, que foram sua família naqueles momentos de gravidez, tiveram muita alegria em ver a nossa amiga estar voltando para sua casa, de uma vez. Caiu na estrada, ela, a criança a nascer, os perdões em dia, as esperanças a aquiescer, Maria corria de volta com muita ansiedade, depois de uns três anos, eis que ela está de volta à animosidade, a tudo que a fez fugir, querer ser gente, livrar-se daquela perversidade. Ela agora é outra, tudo agora vai ser outro, nada vai ser igual.


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Domingo, 17 de Abril de 2022
O PAI BÊBADO ESBRAVEJOU
A filha desaparecida voltou pra casa, voltou para a seio da família, daquela família de intriga; voltou, mas não voltou sozinha, voltou sem ela, sem aquela que foi, mas voltou, com um sorriso desajeitado nos lábios, e uma cria na barriga. Estava nos tempos de parir, o bucho já estava na goela, mas o que fazer? Voltando, Maria relembrou ao vivo as querelas familiares, as limitações da vida na casa, o pouco dinheiro que trouxe e os próximos dias que iria ter. Mas voltou, ali estava ela, e ali estavam todos, se por um lado havia sorrisos amargos, por outro o desconsolo; todas as agruras pareciam voltar, em pouquíssimo tempo, ao semblante da futura mamãe, ela, com disposição continuaria a remar como timoneiro desafiado que o temporal cobra para que nunca se acanhe. Em dois dias estava totalmente agasalhada, seu antigo canto estava de novo sob os seus cuidados; nas novidades que contava, a nossa mulher assumida chegou a dar gargalhadas, e, aos poucos, toda novidade e saudade foi sendo vencidas, e a filha grávida passou a ser tratada como gente da malhada.

Passados outros dois dias, quando a rotina da casa mal assombrada havia voltado ao normal, de tarde chega o Raimundo, aquela peça de vagabundo, cheio da cachaça anormal e começa a vomitar suas broncas até chegar em Maria, conformando toda sua situação como descomunal. Calada, sem reação, pois não iria discutir com um fora de si nojento, a futura mãe assistiu, entendeu o que ainda não havia mudado em tudo aquilo, o mundo antigo que deixou para trás voltando no tempo. Foi aquele dia, no outro dia, no terceiro e quarto também, com a mesma postura em ouvir, se calar, em nada retrucar, a recém chegada se transformava naquela sua tristeza que já foi alguém. O pai não mudara nada, parecia até que estava pior, aquelas mãos que agora bebia tantas cachaças, que no passado lhe incomodara sem dó, não se mostram amigas para este momento que ela vive, se mostram, sim, apropriadas para serem usadas como cipó. Enquanto ele gritava e renegava ela e a gravidez, o mundo de Maria se desmoronava, se fazia inferno com intrepidez, levantava a menina amarga e raivosa que gostaria de esquecer de sua tez. 


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Segunda feira, 18 de Abril de 2022
A MÃE SOFRIDA ESPERNEOU
... E a vida continua, do mesmo jeito de sempre, com as mesmas dores de sempre, e a futura mamãe mais ainda enrolada em tudo isto. Enquanto o pai esbravejava em suas bebidas transloucas, por sua vez a maria -mãe colocava, também, as unhas de fora, e nesta encenação, respingava toda uma herança que o tempo tem lhe acumulado de decepções, raivas, traições e tudo mais que podemos imaginar. Aquela mulher sofrida rosnava em suas amarguras, não aos gritos como o marido de todo dia, mas aos ouvidos de sua filha, bem dentro do coração de Maria. Havia um cansaço demonstrado, uma raiva incontida, um desabafo engomado; aquela mãe era a própria nossa mulher assumida que não muito tempo depois se mostraria ao mundo ao seu redor, como destino conturbado.

Essa mãe, bem que foi mãe, junto às dores de suas marcas de vida, marchou como mãe cuidadora em atitudes em rosário, preocupada em ser e atuar num mínimo que ser mãe, naqueles momentos, lhe dizia ser necessário. Acompanhou a filha a um posto de saúde na proximidade, aquele do seu bairro pobre; costurou algumas fraudas, alguns paninhos, mostrou até carinho do que estava fazendo; incentivou vizinhos a participarem dos preparativos para aquele nascimento; foi uma mãe, a pesar de tudo, mostrou-se mãe, a pesar da dor e dos rancores que suas rugas abaixadas desenhavam em seu rosto envelhecido. Na verdade, a sua Maria era mais uma preocupação, mais uma sofridão, embora fosse vítima de sua vida amarga, até fazia parte do amargo que sua vida sofria. Nossa amiga percebia tudo, e como fazia com o pai, se calava, em silêncio adoecia com tanta traição que sofria de tudo e de todos, e que, da mesma forma, ela cometia contra todos e tudo.


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Terça feira, 19 de Abril de 2022
AS IRMÃS E A MESMA SITUAÇÃO
Maria em casa como se não tivesse, escorraçada e mais uma traição que a vida lhe prega, como se esta não lhe estivesse. A nossa grávida experimentava seu passado no mesmo lugar, convivendo com a mesma gente; excluída e extraída, era o que seu coração lhe dizia a todo momento comovente. Mas tudo parecia ter de ser aguentado, tratava-se de uma criança que estava para nascer; um preço tinha que ser "pagado", era como um drible que contra a vida teria que se fazer. E ela estava disposta a isto, vez por outra se encontrava chorando, como que lamentando alguma fraqueza, mas ao mesmo tempo se comportando para encontra, em tudo aquilo e em sua cria, alguma fortaleza. Era uma artista, vivia um papel ousado e destemido, mesmo que por dentro enfrentava sua dor, decepção, bem a vista, marchava segura por passo a passo que a própria circunstância lhe tem imprimido.

Para completar as ardências de sua casa, da sua família "ingrata" e "desumana", suas duas irmãs, uma já "amaziada" e outra solteira, lhe torravam as cordas da sua paciência insana. Cada uma ao seu jeito, mesmo a que morava ali por perto, não tinha um dia que não lhe cantavam a música da solidão, aquela triste que desvaira qualquer alegria que se possa mostrar num coração. Pode ser também, que com os pensamentos sofridos e sofrendo com tudo ao seu redor mesquinho, Maria esteja vendo e entendendo coisas que nada tenha a ver com esse seu arminho; pode ser também que com tudo que lhe beira a rejeição, a nossa Maria não esteja respeitando o jeito de cada uma, ou de todos ao seu redor, e tem feito de pequenos legumes uma sopa em caldeirão. Fato é que ali está a nossa amiga, aprendendo a sofrer calada, a tirar águas de pedra maciça, aprendendo a ser gente que, mesmo armada, sem violência, sabe ser um tipo de lírio no meio da "imundiça".


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Quarta feira, 20 de Abril de 2022
EXPULSA PELAS REAÇÕES
Naquela altura, a barriga não tinha mais espaço para crescer, ela estava enorme; ao mesmo tempo, a raiva de assistir calada tudo aquilo nas fisionomias, não tinha como mais desaparecer, estava fora dos conformes; alguma coisa precisava tomar rumo, e o espírito aventureiro encontrou guarida na alma da pobre mulher, exigindo que ela tomasse algum prumo, e tomou. Como se diz por aí, ela dormiu mas não amanheceu, de manhã cedo já não havia nada na casa que lembrasse a Maria que todos trataram diverso ao camafeu. Silenciosa, mas com todo o barulho que sua raiva poderia lhe animar, a nossa mulher assumida tomou seu destino, expulsou-se de casa, mesmo sem saber onde poderia parar. Carregando um cesto de roupas, ou puxando ele pelas ruas, atravessou quarteirões, debruçou-se numa praça, chorando a vida, lamentando as agruras suas.

Foi acordada por alguém, parecia uma pessoa conhecida, lhe tratou com carinho, se ofereceu como guarida, levou-a para casa, cuidou-lhe as internas feridas, mostrou-se uma maravilhosa mão amiga. A pessoa se apresentou, era daquela igreja do bairro, como anjo a aparecer, ofereceu-se como madrinha da criança, gostaria de assumir a mãe que Maria não parecia ter. Passou um dia inteiro por ali, recebendo atenção e tudo do bom e do melhor que a casa poderia oferecer; nossa futura mãe não conseguia acreditar em tudo que estava vivendo, em tudo que estava, de suas angústias, a espairecer. A vida que pediu a Deus, era o que seu coração lhe cantava; grávida, pesada, tudo lhe chegava às mãos, ninguém permitia que ela deixasse de fazer nada. Estava no céu, seus olhos, seu sorriso, sua alegria era o que todo mundo esperava e recebia, o melhor jeito que ela tinha para mostrar-se agradecida, reconhecida, a maria mais feliz do mundo.


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Quinta feira, 21 de Abril de 2022
EXPULSA POR SI MESMA
A vida continua, entra dia e sai dia, e ela continua em sua marcha e vela, sem se adaptar a nada, tendo tudo se adaptando às exigências dela. Num momento esteve num inferno que o coração de Maria sofreu muitas traições; e, já, num outro momento, está num céu recheado de paparicações. Num momento ou outro, voltava à sua lembrança o que deixou para trás, aquela mentira que viveu longe de tudo que fosse entendido como paz, e que agora, graças a Deus, era passado, embora ainda lhe trazia uma dor contumaz. Todo mundo naquela casa lhe virou os ombros, todo mundo lhe provocou escombros; a porta da serventia lhe foi apontada por muitas vezes, de muitas maneiras, até que ela resistiu, buscou compreensão em asneiras, mas teve que sair, deixar tudo, fugir naquele mundo, nem que estivesse fazendo mais uma besteira. Eles a expulsaram, mas ela se expulsou, ela sempre promoveu condição para ser expulsa e aquele momento chegou; na mente de Maria isto estava muito claro e evidente, todo mundo ali tinha culpas, mas, com certeza, ela não era a inocente.

Mas o que fazer com tudo isto? Esquecer? Fazer de contas que não aconteceu? Eram sua casa, eram sua família, a pesar de tudo isto, nunca poderia dizer a si que foi algo que esqueceu. Além do mais, na casa onde, agora, reinava, havia um ambiente tão forte de família, de gente amando gente, de gente preocupada com gente, que por mais que se distraísse com tanto carinho que recebia, não conseguia desarmar as comparações da casa e da família que tinha. Com eles que lhe cuidavam, já foi umas duas vezes à igreja, e lá completou o enxoval que faltava pra chegada de sua criança e da parição e sua peleja. Há esta coisa bonita e divina no inconsciente coletivo em relação à maternidade, as mulheres se transformam em um tipo de deusas singulares, como mães da humanidade, e, por sua vez, as pessoas se deslumbram como filhos atentos e cuidadosos dessas santas mulheres grávidas em suas cumplicidades. Maria, como as marias podem ser, é uma Eva pra todos ao seu redor.


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Quinta feira, 22 de Abril de 2022
MARIA VIRA MÃE
Já é mãe, já pensa e se comporta como mãe, já sonha e se planeja como mãe, tudo isto antes mesmo de ser o que vai ser, o que deve ser, o que não tem como não ser, mãe. E chega o dia de parir, as dores intensas e repetidas se tornam mais constantes e em períodos cada vez mais curtos, ela está para ser mãe. A maternidade lhe abre os braços com uma música dolorida e angustiante, a ansiedade lhe bate a porta numa dança de esperanças deferidas, e dúvidas contagiantes. Maria chora e sorri ao mesmo tempo, contorce e acha graça; está nascendo o melhor dela, de alguma forma, é a vida que lhe abraça. A família que lhe dá guarida, se comporta como se fosse a filha da casa, há uma felicidade desajeitada nos lábios e na agitação de todos, uma convulsão feliz que se abrasa. Tudo se arruma com tenacidade, para levar a nova mamãe à maternidade da cidade.

Maria já instalada numa enfermaria, aguardando seu momento de dar a luz, se mostra, com todos, o consentimento da alegria, está a própria demonstração do que é a vida, nos altos e baixos, os auges que ela seduz. Chegado o momento, levada para o canto da vida, sob dores, choros, incentivos, massagens, procedimentos e manejos de mãos queridas, mais uma maria vem ao mundo e é colocada no peito da mãe agradecida. Ela segura a criança, aperta contra si, sorri com o que conquistava, era o seu melhor momento acontecendo ali; a criancinha, mesmo com os olhos fechados, parecia entender tudo, e um mesmo sorriso abriu para aquele sorriso achado, era sua mãe, a mulher que iria marcar sua existência no mundo. Mariazinha já existia como gente que estava vindo para fazer história, inclusive na vida de Maria; mas agora era total realidade, ela chegou, era quem iria marcar a sua própria vida de gente, mulher e mãe, todos os dias. Se a vida quer e faz assim, é assim que a banda tem que tocar pra nós, neste mundo aqui; é assim que temos que dançar no ritmo qualquer que esta banda tiver que musicar. É e vai ser assim com Maria, também com Mariazinha por suas pradarias, sem ser diferente com todas as marias, e com todo mundo para não termos nossas vidas vazias.


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Sexta feira, 23 de Abril de 2022
MAIS UMA MARIA
O mundo está privilegiado, está nascida neste dia, mais uma vítima para seus maltratos gananciosos e engajados, dos seus sofridos e roubados, nasce mais uma maria. Como qualquer outra vai sobreviver, mas sobreviver para que? Num coro alucinado e em tons de zumbis, todas as marias respondem: Sobreviver para continuar maltratadas e terem suas vidas em funis. Para que sobreviver? Maria terá de ter uma resposta para si, e de agora em diante, para a ela nascida, em relação a tudo que vir. Todas as manhãs terá que rever sua resposta, em todas as manhãs esta mesma questão, pela vida, pelas desesperanças, será posta. Sua mariazinha estará num berço chorando e ao ir ao seu encontro para atender ao que careça, ela, a mãe, terá que estar com uma resposta pronta em sua face como milagre que desvaneça.

É assim que vai ser, é desse jeito que deve ser; sobreviver num mundo sujo e amargo, carregado de usura, não de uma maioria vitimada em seus limites, mas d'uns poucos diabos distantes que sentados em suas poltronas, dão de ombros para quem quer que seja a fonte de suas gorduras. Sobreviver é preciso, mesmo que este inferno exista, mesmo que ele esteja à nossa porta a todo momento, deslumbrando sua indiferença em tudo que, contra nós, invista. Sobreviver é é a pauta do dia, de todos os dias, acordar, ir lá fora matar um ou dois leões e voltar para cuidar da nova maria. Tudo muito previsível, nada vai ser diferente dessa dor, vive-se para sobreviver e não o contrário, sobreviver para se viver animador. É assim: Aqueles poucos, a ganância não deixa ser feliz, e buscando esta felicidade, eles, se fazem diabos pra tira tudo que possa deixar a maioria viver por seu nariz.


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Sábado, 24 de Abril de 2022
MARIAZINHA NASCEU GENTE
Nasceu a esperada, festejos, alegrias, sorrisos e cuidados se juntam, a pequena garotinha trouxe consigo, até mesmo na sua fisionomia, felicidades que todos desfrutam. Parece que, todo munda na casa, pariu esse ser; até parece que todos passaram pela dor ansiosa do que estava para nascer; até a vizinhança, nestes festejos, se eclodiu; Mariazinha trouxe um céu para aquele lugar que lhe acudiu. A vida é tão simples, felicidade é tão fácil, basta um sorriso e o contágio acontece, sem preço, sem dinheiro, e todo mundo enriquece, se torna uma felicidade que se irradia, a todos em volta, como uma prece. Mas o mundo está aí, a ganância não se curva, melhor a tristeza em fortunas do que alegrias em carências turvas; muito melhor é a abastança solitária e vazia, do que a divisão dessa alegria e dos privilégios que só alguns conseguem ter.

Mariazinha era a porção mágica de tudo isto, cheia de limites e impossibilidades, mas a alegria que conseguia promover no coração de tanta gente em sua proximidade, era de invejar o mais ricos dos homens, o mais popular de qualquer cidade. A casa toda bajulava mãe e filha, vizinhos vinham ver e trazer a simpatia, a alegria no melhor de suas vasilhas; vizinhos mais distantes informados, mesmo atarefados, conseguiam se mobiliar a, também trazer, o melhor de suas partilhas. A rua toda, o quarteirão inteiro, o mundo todo parecia se interessar ligeiro àquela nova que a menininha tão calada e observadora conseguia patrocinar naquele fogueiro. A alma de uma criança é anjo completo, é algo celeste que não se tem como explicar, parece trazer do céu, onde estava, todo o odor da paz, do carinho e do afeto, parece ser a própria personalização do que seja amar. A nossa mariazinha está sendo tudo isto, todo mundo desfrutando do seu jeito angelical, quando sorri encandeia todo o universo, e até quando chora, parece espantar tudo de amargo que se pronuncia em qualquer mal.


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Domingo, 25 de Abril de 2022
QUERIA VOLTAR A SER MARIA
Passada uma semana, ou duas, pelos caminhos do bairro amigo, nas proximidades de suas acomodações, a nova mãe passeava com sua cria pelas ruas, ainda se sentindo sob abrigos, refreando com alegrias as suas muitas e últimas emoções. Era como uma marcha de liberdade, algo que nunca experimentara na vida, uma nova mulher que realizava em sua mocidade, a mais cara, a mais real, a maior experiência entre todas atrevidas. Numa destas saídas a passeio, Maria encontra alguém que no passado recente fez parte de seus anseios; conversa vai, conversa vem, lembranças chegam, saudades renascem, e rápido como um vento, lá estava Maria desejosa de voltar aos velhos tempos. O sangue promíscuo do pai Raimundo passa a gritar mais alto e mais profundo e até o freio que carregava nos braços não foi suficiente para lembrar-se a mulher que era agora, a confiança que tanta gente lhe ofereceu contra essa amarga piora.

Às escondidas, com vergonha de si mesma e do que estava preferindo ser e fazer, ela passa a se encontrar com aquele sujeito que todo um passado inganjento oferecia em seu prazer. Passou a mentir para atender ao coração, para evitar a comiseração dos seus benfeitores, mas não conseguia dizer não a todo aquele ardor de autosabotagem que a vida lhe oferecia em mais uma traição. Mariazinha nos braços de uns e de outros, levada daqui para acolá, assistia tudo, orquestrava toda sua vivência, determinava sua vida como vítima  a se considerar. Os encontros com aquele sujeito se tornaram mais intensos, os biscates que fazia se tornaram mais intentos, e Maria se articulou para com ele ir morar. Como deixar tudo que vivia? Como abandonar tanto carinho que sentia? Mas a alma falava mais forte e teria que sair de qualquer jeito, um dia; era aquele o momento, "seja o que Deus quiser".


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Segunda feira, 26 de Abril de 2022
QUALQUER COISA PRA SER ELA
Chegou o momento de sair, de cair fora; na verdade não era fora que ela iria cair agora, mas dentro, de novo, estava caindo para dentro dela mesma, da vida que marias como ela, vira e mexe, se adentra como a lesma. Se despediu com festas, daquele mundo de atenção e carinho, e foi se hospedar como às pressas numa terra sem dono e sem jeitinhos, num território sem lei que ela não sabia por que, mas não tinha como viver fora de sua grei. Um quartinho, um lugar pequeno, muito diminuto lhe foi oferecido pelo seu sujeito, um recantinho, um colchão ameno, era um insulto que lhe foi contido como um efeito. Ela dizia e repetia em seu coração, que era qualquer coisa pra voltar a ser ela; estava disposta a pagar qualquer fração para voltar ser a mulher que foi construída em seu jeito de ser bela.

Um mês inteiro passou, os tostões de bicos que seu sujeito conseguia, era o que trazia a pouca comida, o pouco leite a pouca coisa que sua existência pedia. Embora ela não confiasse tanto naquele homem que lhe fazia companhia, ele até se mostrou homem, trabalhador limitado que de um jeito ou outro, se mostrava comportado, comprometido em trazer para casa, à convivência de sua pequena família, o pouco recurso que conseguia. Maria resolveu buscar um emprego de doméstica, mesmo tendo que carregar sua mariazinha pelos cantos que tivesse que ir; procurou numa casa ou outra, espalhou o que desejava conseguir, foi procurada nisto por uns e outros, até que se instalou num trabalho leve, mal pago que uma família lhe deu para cumprir.


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Terça feira, 27 de Abril de 2022
OUTRO TRABALHINO NA VIDA
Encontrou um serviço mal pago, altamente explorador, o que era para ser pago um salário mixuruca que os mixurucas aprovaram lá no poder vago, vai ser pago com um dinheirinho de quem estava "fazendo um favor". E haveria outro para se assumir trabalhar? De um jeito ou outro haveria o choro de quem vai pagar. Mas, como muitas das marias pela vida, a nossa Maria assumiu a escravidão; iludida com a vida, que se tratava de uma grande ajuda, tudo se tratava do melhor pra seu patrão. Mas, teria o que fazer, um ganho pequeno e a mais para, em sua casa, a seu sujeito, oferecer. Teria como ficar com a criança, trabalhando e dando alguma atenção a ela, teria onde comer e dividir o de comer pra matar a fome dela. Se sentia a mulher mais sortuda do mundo, só faltava beijar os pés da patroa, era, na verdade, a mais explorada, contudo, uma das mais humilhadas nesse tipo de canoa. Mas não é isso que o marketing da ganância apregoa? Não isto que a mídia, o tempo todo, nos faz apreciar? O veneno alienador que eles plantam na gente, eles colhem com muitos mais lucro em nossa miséria nos fazendo contentes.

A nossa mãe recente, dentro de seus limites reais, e mais ainda, em seus limites em crenças, se sentia feliz; atravessava a semana, dia a dia, cheia de esperanças, sonhos e ousadias, mas, no sábado quando teria que trabalhar até o final da tarde, voltava chorando sem saber o que fazer com o que recebia. Esse negócio de situação análoga à escravidão era mais que evidente naquele trabalho que ela tinha que viver; seu patrão era gente dessa Justiça que está por aí, mas a lei e o que ela ordena é para os outros, quem é da lei, o que ela diz, não precisa atender. É assim que grande parte das marias vivem e se submetem, é dessa forma também que a vida se faz traiçoeira a estas maravilhosas mulheres que, para viver, se autopervertem. Mas a esperança de dias melhores até que dão muita força em todo presente e seus infortúnios; esperar que mudanças aconteçam pelo pouco espírito de humanidade que ainda resta no coração de quem faz e aplica as leis, entre todos os muitos importunos.


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Quarta feira, 28 de Abril de 2022
COMO SE FOSSE DA FAMÍLIA
O trabalho transcorria bem, havia até algum prazer em estar trabalhando naquele lugar; família agradável, patroa bondosa, paciente, e amiga também; patrão diferente, parecia não ser um raimundo por lá. Os dias se passavam, as semanas mal remuneradas corriam, toda aquela bondade patronal se escondia por trás da injustiça que faziam. Poderiam pagar melhor? Sim, bastava que gastassem menos em situações que, imprescindíveis se mostravam maior. Mas não podiam abrir mão de algo tão importante, o que os outros iriam dizer? O preço pra isto, para parecer confortante, afagos e jeitinhos era o que poderiam abrir mão de fazer. Além do mais, tem que tratar bem os explorados de sua safra, vai que entendam reclamar na justiça a exploração que a ganância que os abraça. Sendo bem tratados com o devido carinho, como se da família fossem, terão mais dificuldades de berrarem pelo mundo a dureza da armadilha que contra eles, armou-se.

Com Maria, como com grande parte das marias, aquele palácio de fumaça acontecia, esse objetivo doentio e alienador, ela sentia; até se achava a pessoa mais "justiçada" do mundo, a pesar de tudo que, contra o mundo, lhe corroía. Fato é, que ela se sentia em casa, até por que, mais tempo passava ali, do que no convívio, em qualquer outro lugar; quase dez a doze horas por dia, de segunda a segunda, somente para trabalhar. Vida miserável, por que tem que ser assim? Por que uns com tanto, com muito tempo pra viver, e outros com pouco, só com o suficiente para mal sobreviver? Lá na igreja do bairro, ela se lembra, do que aquele padre dizia: "O amor à ganância é a causa de todos os males", o amor ao acúmulo é o motivo pra tanta hipocrisia. No meio desta bagunça, no frigir dos ovos desta lambança, as muitas marias extorquidas como gente e como mulher a alimentar, dos outros, a ganhuça; sofrem, todos os dias, o peso emocional de todo tipo de desesperança.


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Quinta feira, 29 de Abril de 2022
A HISTÓRIA SE REPETE
De casa para o trabalho, do trabalho para casa; carregando a mariazinha na cacunda, a nossa mãe sofria de cima para baixo e de baixo para cima como se portasse asas. Em casa para dormir, no trabalho para viver pra trabalhar, é a Revolução Industrial que se repete em traços modernos a se adaptar. A qualquer hora ela vai receber o convite pra ficar no quartinho de dispensa, uma cama, lá, ainda dá pra botar. Talvez com isto não precise qualquer coisinha pagar e já seria muito pra ela que não tinha onde cair morta, e teve aquela família pra lhe ajudar. A história se repete, a exploração do ser humano pelo ser humano se mantém, mesmo que as justificativas e desculpas esfarrapadas só a um lado, convém; mesmo que tenhamos que suportar a ideia maliciosa de que o explorador é nosso melhor amigo, é nosso anjo da guarda, o que nos leva a jogar pedras em quem consegue ver nossa dor calada, e vai à luta para buscar justiça e amenizar a nossa jornada.

De casa para a exploração para depois deixar o trabalho e ir descansar, pois no dia seguinte, de muita saúde e disposição, o trabalho dos nossos ajudadores amigos, vai precisar. Essa cantiga mórbida e desumana, a nossa Maria cantava e dançava todos os dias sozinha, de um lado para o outro, não importando a distância e o cansaço, carregando sua mariazinha. É certo que nossa amiga não é flor que se cheire, ela sabe plantar seus muitos inconvenientes, porém, mais certo é que para grande parte das marias, a vida é traiçoeira, mesmo que não se "queire", ela sempre é traiçoeira para a nossa amiga que não sabe ser, pra si, leniente. Na existência sistêmica que temos, maltratamos a nós mesmos, sem nenhuma sabedoria, quando somos peças que a vida usa em suas traições para abandejar em traições, estas tantas, benditas e angelicais marias. Somos o nosso próprio mal, não precisamos de diabo para sermos esse tal; nós nos bastamos no nosso próprio inferno de maldades quando, em nossas vaidades, nos travestimos de hipocrisias que até parecem justificar os "cãos" que somos, uns para os outros, de verdade.


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Sábado, 30 de Abril de 2022
FALSA LIBERDADE
Tudo pela liberdade de querer ser o que quiser, era o grande lema incubado que nossa nova mãe alimentava em seu ser? Fica nisto e não reflete o que seria liberdade, só lembra do inferno que estava em sua infância, sem pensar no quase inferno que se mete com sua inconstância. As marias são assim, e são assim por se deixarem enganar por uma liberdade que não liberta nada, nem a si; ao contrário, empurra a pessoa para prisões ainda mais consistentes, embora, aparentemente, bem reluzentes, mas cheias de grilhões sem fim. Nossa garota crescida tem sido vítima de uma existência traidora, e além disto, por causa disto, a partir disto, tem sido sua maior traição; com suas própria mãos tem cavado suas covas enganadoras, tem alimentado tudo que lhe seja ferida de coração. Uma falsa liberdade que lhe é vendida, o ser dona do seu nariz, ser a mulher que desejar ser, viver do jeito que quiser, não levar desaforo pra casa, dogmas ferrenhos dessa matiz. 

Por liberdade, Maria está arquitetando novas mudanças, sente que precisa tomar algumas iniciativas para fazer coisas acontecerem; ainda não sabe o que tem a fazer, ainda não compreende que pauzinhos ela deve mexer pra essas tais mudanças se convencerem. É o novo sonho que abunda o seu peito, indo ou vindo do trabalho é a novidade que parteia o seu aceito; durante o dia na escravidão que se submete ou a noite na companhia do seu sujeito, é o novo horizonte que que está a dançar na música que sua alma canta em concerto. Como antes e como sempre, o coração dessa mulher se encaminha para por novas trilhas, está ofegante por ver acontecer o que seja de novas ilhas; quem sabe é nesta camaradagem do destino que algo melhor amadureça e seus maiores sonhos venham se realizar na companhia de sua filha. Entusiasmada, quase não vê os dias passarem, vacinada com este novo atalho, quase não sofre tanto com as angústias da escravidão a lhe assolarem. Maria parece estar até feliz, entorpecida com o que haverá de fazer, embora ainda não saiba bem qual chamariz, ela terá que obedecer.


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Domingo, 1 de Maio de 2022
SONHOS CONSTRÓEM O MUNDO
Toda mulher sonha. O sonho de uma mulher é como uma alavanca que puxa ela e provoca todo mundo a seguir seu puxão. Pode ser uma maria qualquer, todo seu sonho vai ser banca para influenciar o mundo inteiro para a sua paixão. Não é o sistema que diz o que uma mulher dever ambicionar, mas o sistema tem que se virar para saber ganhar sobre tudo que qualquer mulher deseja conquistar. No inverso, os raimundos e os sujeitos sempre terão que abrir mão de seus trejeitos para chegarem ou tentarem aportar aonde elas já chegaram com o que estiveram a sonhar. É assim que é, é assim que tem sido, e Maria como mulher não tem tido diferença; ela sonha e nunca vai deixar de sonhar, isso vai mover moinhos, isso vai mover conveniências.

Hoje é o dia do trabalho, hoje é o dia do trabalhador; é o ser que mais sonha e, com isto, e por isto, é o ser que mais carregar o andor. No palco que leva às costas, como escravo explorado, é quem mais canta liberdades, quem mais tem sonhos desconsiderados. Até em nome de Deus há quem defenda o amargor dessa escravidão moderna; há até quem agradeça a Deus esta extorsão considerada paterna; e o trabalhador que a vida diz: "eu componho", teimoso como uma mula se submete a tudo isto, mas não abre mão dos seus sonhos. A nossa Maria é bem assim, como se é: tudo isto e muito mais, é trabalhador além de ser mulher, é mãe além de ser pobre; exatamente como o mercado quer, como também, o mercado despreza para remunerar muito mal e ainda ter certeza que produz um coração grato, satisfeito e "mané".


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Segunda feira, 2 de Maio de 2022
SONHAR NÃO É PECADO
A nossa amiga vivia e atravessava tudo aquilo, era mais uma peça na engrenagem de um sistema ganancioso e doente; era mais uma maria a pensar que é livre para ser quem ela queira ser, como gente. A única coisa a fazer é sonhar, acreditar que ela é dona do seu destino, e que se ela for persistente vence todas as barreiras impostas por existir traquino. Sonhava mas não conseguia ver como concretizar o que seu coração lhe oferecia de alento; passava o dia inteiro naquela casa, naquele serviço, naquele tormento, que tempo teria para oferecer ao destino? Como conseguiria encontrar seus desconhecidos talentos? Era tudo uma mentira, Matrix tinha razão, só temos importância para não deixar a máquina da ganância para em sua vazão. Maria faz parte desta trituradeira, é quem tem dado, também, a sua existência para a "imparável" britadeira que sabe, como ninguém, mastigar vidas, mastigar sonhos em troca de só oferecer besteiras.

Depois de sonhar nada, dia e noite, depois de varar madrugadas como açoite, nossa heroína tira uma soneca às pressas para, então, poder arrumar o que tem que arrumar, fazer a comida que precisa fazer para seu sujeito, preparar-se no que tem que preparar-se, pegar o caminho da senzala, acacundar a mariazinha que não lhe desgruda, e ir matar-se no que é dito que seja bondade de seus patrões, como tem feito e parece que fará para sempre. Na verdade sonha mais de olhos abertos do que fechados, sonha mais caminhando e correndo de u lado para outro do que em momentos apagados. Sonha o que? Que Deus lhe mostre um jeito de mudar daquela vida, um jeito de virar gente; que o Deus bondoso que ela até acredita, lhe dê condição de se libertar, de vez, daquele contingente. Sonhar não é pecado, sonhar pode até nos trazer comportamento amolecado, mas não faz mal a ninguém.


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Terça feira, 3 de Maio de 2022
TODA MULHER TEM PRESSA
Alegre com pouco, muito pouco, num escuro; ganhando mixaria com seu trabalho escravo e duro; mais de dez horas todos os dias num cotidiano inseguro, a nossa heroína se mostra aquela mesma teimosa contra ela, insistindo no que não deve, e abandonando o que lhe seria cautela... É um tipo de sabotagem de si mesma, é o próprio porco produzindo mortadela. Dia e noite é bem assim, e os dias passam, e a vida passa, é um sonho sem fim, uma grande vontade de ser o que nunca chega por suas próprias mãos, lhe corroendo como cupim. Mas Há uma pressa nativa em suas querências, uma incompreensão com demoras que impedem o atendimento de suas carências. Como todas as marias, até em seus atrasos, por um motivo ou outro, há uma vontade imensa de não esperar o depois, é a pressa natural e necessária de crescer e andar, logo que nasce o potro.

Maria é mulher, e, talvez, mais que mulher que as outras ao seu redor, enfrenta tudo, enfrenta todos, mesmo quando tímida, está apanhando sem dó. Tem uma força descomunal, uma vontade imperial de ser gente, pela menos ser reconhecida assim; de virar semente de si mesma, contribuir consigo mesma, para ser seu próprio jardim. Com isso, carregar muita gente consigo, premiar todos que lhe fizeram bem; fazer-se, para muitos, um gostoso abrigo, ser um anjo que compense na vida de muitos, o mal que sempre vem. Ela sonha que existe Deus, que Ele vai lhe dar tudo que seu coração, de bem, prefere; que tem prazer de abençoar e realizar sonhos dos Seus, que se realiza promovendo mundos e alegrias a todos que na vida se fere. 


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Quarta feira, 4 de Maio de 2022
MARIAZINHA ESTÁ CRESCENDO
Num desses dias, saindo de sua rotina fatigante, nossa Maria faz uma descoberta surpreendente; seus olhos se abrem diante dos olhos da filha, dentro daqueles olhinhos, ela vê que sua menina cresceu muito de repente. Bateu uma nova angústia em seu coração, era apavorante o que descobria naquela visão: E agora? Não era mais uma criancinha, uma gentinha sem futuro a se zelar; era uma pessoa que estava bem ali, e mais ainda, era uma mulher que começava a debrochar. O que fazer, meu Deus? Foi a melhor música que nossa guerreira teve nos lábios ante o pavor que lhe veio à mente. Iria repetir a sua mãe? Iria construir uma ela de novo? Iria promover todas as circunstâncias que mararam sua vida pra ela ser quem é? A menina estava bem ali, bem diante dos seus olhos, diante do seu coração, de sua alma, que futuro ela iria providenciar para aquela vida, no melhor de sua calma? Nossa amiga sorriu de si naquela situação, chorou por si naquela ocasião, pensou em si para aquela busca de solução. Pobre Maria, não deu conta de  sua vida, agora descobria que teria que dar contas de outra existência, de outra avenida.

Mecanicamente fazia uma coisa ou outra dentro daquela casa, cumprindo seu papel de empregada domesticada, cumpria sua jornada sem fim, sem horários, sem direitos, sem nenhum tempo para viver sua vida desplanejada. Enquanto se envolvia naquelas tarefas, seus pensamentos estavam muito longe; lembrava de sua vida, de tudo que passara, queria tudo claro pra evitar a mesma façanha para sua filha, para sua nova vida, ao contrário do que a própria vida lhe causara. O que poderia ser para dar novo sentido àquela menina? O que poderia fazer para dar novo ouvido àquela pequenina? Onde encontrar solução para tudo isto num mundo tão traiçoeiro? Houvesse o que houvesse, ela teria que encontrar algum travesseiro, algum jeito para agir, e ligeiro. Não se perdoaria se fosse, em seu lidar com tudo isto, repetir a sua mãe, em culpas e desculpas, ser apenas mais uma maria no trato com aquela nova guria.


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Quinta feira, 5 de Maio de 2022
EFEITO DOMINÓ
Aconteceu uma crise lá no outro lado do mundo, correu e tem corroído todo aquele continente; chegou ao vizinho, está detonando várias bolsas por aí, em suas ganâncias estridentes; chegou bem perto, está ameaçando tudo, está estragando tudo que seja emergente. Maria já sente a falta de uma e outas coisas em seu trabalho, já tem que improvisar no seu cotidiano, com as cartas que tem em seu baralho; até que a patroa que já era exploradora, veio lhe avisar, trouxe uma proposta ainda mais propícia ao seu jeito maligno de assalariar: Aceita receber menos em seu semanal ou deixa o trabalho, naquela semana, em seu final. Bem disse um "Zé Ruela" executivo: A melhor coisa é o momento de crise, a gente paga o que quer, e o empregado ainda nos beija os pés pra nos fazer cafuné. Entre a cruz e a espada, a nossa amiga escutou, deu muita vontade de chorar, muita vontade de explodir, não tinha palavras para falar, não teve reação nem pra sorrir. Mais um golpe, mais uma traição, uma criança pra criar em toda aquela situação, e ainda ter que pagar pra trabalhar duro, pesado, só pra dizer que está trabalhando. Ela está bem ali, uma água parada sem saber por onde correr; olhando nos olhos da megera sem saber o que fazer, sem saber o que responder.

Nesse dia, foi pra casa com sua bonequinha, mais cedo, a noite já havia chegado, pelas ruas claras e escuras, tudo lhe passava como um turbilhão, já não ganhava nada, agora, pior ainda, o que fazer diante deste furacão? Calada, chegou em casa, esperou ficar mais calma para conversar com seu sujeito, para chorar as suas raivas como desmaio em seu peito. Até ele chorou diante de tanta tristeza, não sabia como confortar, seu trabalho não era garantia para ela descansar. Esperou, refletiu, e ainda chorando e apertando a cabeça dela em seu peito, deu sua opinião: É melhor aceitar, pior seria, pelo menos você tem onde comer com nossa menina, todo dia; o pouquinho de dinheiro que vier, a gente junta com o meu; a gente vai se virando, enfrentando tudo isto, quem sabe, as coisas melhoram e se tornam camafeu.


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Sexta feira, 6 de Maio de 2022
DESCOBRIU-SE FELIZ
Em outro dia de descobertas, Maria se encontrou consigo, também em boquiaberta; estava casada, parecia um século, muito tempo com uma pessoa, não sabia que porta da esperança havia aberta. Não parecia ela, não dava para entender, como que tem conseguido até amar, até suportar, como, com tanto tempo, por tanto tempo, sobreviver. Aquele seu sujeito parecia especial, mesmo não tendo predicados que qualquer outra maria teria a exigir para considerar como presente celestial. Era um Zé ninguém, pobre, mal criado pelos pais, cheio de defeitos e limitações, medroso, submisso até certo ponto, sem iniciativas, sem sonhos, sem tudo que necessário para mexer muito com suas emoções. Mas ali estava ele, ali estava ela, casados, ou parecendo que sim, até certo ponto harmonizados, respeitosos entre si; era um casamento que estava dando certo, e isto até produziu um suave conforto e segurança para a nossa Maria; muito do seu estresse ficou pra trás, era uma mulher mais mulher, mais cuidadosa de si, mais interessado no seu mundo, por mais limitado que fosse em seu dia a dia. 

Este acordar para que lhe envolvia, não foi em sua casa, acordando olhando o outro rosto que em sua cama se estendia, não foi na despedida cedo da manhã, quando estava saindo para o trabalho que pretendia, mas na casa dos patrões exploradores, na relação que mostraram entre si, logo que ela chegou e assistiu aqueles bastidores. A briga exposta nos reclames entre eles, nos xingamentos contra eles, na confirmação de que se tratava não de um momento de crise, mas de um bom tempo de distâncias, amarguras, decepções em constantes reprises. Nossa Maria ouvia tudo calada, atuando em seu serviço de sempre, fazia de tudo como não estando naquele lugar, por um lado para não constranger os briguentos, e por outro, para, sobre si, seu casamento, tranquila e sorrindo, poder comungar. A confusão cessou, um dos brigões teve que sair, o outro que ficou, se amuou, foi para um canto chorar e se esvair. Maria teve uma pitada de alegria, seus exploradores tinham seus preços a pagarem pelos mesmos sentimentos que lhes davam agruras e que sofrimentos lhes traziam.


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Sábado, 7 de Maio de 2022
DESCOBRIU-SE INFELIZ
Mas o outro dia chegou e a nossa Maria se descobriu assustada, de novo; os dias anteriores voltaram com suas descobertas atadas, chegaram como um mal renovo. A pesar da felicidade em casa e a tristeza no trabalho, A carência de ter que sair do marasmo rompante, ter que abrir caminhos nortantes, para chegar onde precisa, urgente, chegar. Não está certo continuar naquela vida limitada, mariazinha está a crescer e a exigir um lugar melhor ao sol; a responsabilidade é dela nesta empreitada, a responsabilidade é dela em encontrar e lançar o anzol. Mas, meu Deus, o que poderia ela fazer? Que porta ela poderia encontrar? As angústias voltaram a aparecer, a solidão da dor da perda voltou a incomodar. O rosto alegre, satisfeito que chegou ontem a noite em casa, amanheceu tristonho, duvidoso e com os ódios antigos queimando feito brasa. Antes de sair para o serviço, praquele inferno zombador de almas, mesmo sem querer, involuntariamente, a nossa guerreira deu uma olhada pra cada canto daquela tapera que cabia em sua palma. Deu um suspiro profundo em desabafo, chacoalhou a cabeça num sinal de não, baixou os olhos como um abafo, e seguiu amarga para o caveirão.

Maria não é tão diferente das marias que a gente conhece por aí. A vida é mais difícil para elas, e a gente sabe bem que é assim. E, com tudo isto, piorando tudo nisto, soma-se a luta de classe que os bandidos endieirados propagandeiam não existir. E o que mais dói, não para muitas marias que nem percebem o mal que vivem, é quando elas mesmas, em massa de manobra, atuam bêbadas e alienadas pra defender estes bandidos e as justificativas deles que as afligem. Nossa Maria é uma delas, precisa ver a raiva que ela tem dos movimentos grevistas que as vezes encontra pelas ruas, dos governos trabalhistas que se recomendam contra as falcatruas, dos invasores de terras improdutivas que existem para especular preços que as instrua. Tem toda raiva do mundo contra seu patrão, o metido a rico que o tempo todo lhe enfeita um caixão; mas tem defesa pronta para enfrentar qualquer afronta que lhe pareça contra os interesses dos patrões que são iguaizinhos ao seu. Ela não consegue perceber que em muitos sentidos ela mesma lhe trai, ela mesma se faz sua inimiga para depois colocar a culpa na vida. Mas o mundo continua rolando, fazendo sua volta sem fim, quando nossa Maria age, dessa maneira assim, não só ela se machuca e se lhe empobrece, mas contribui muito para que todas as marias, também, continuem vivendo o que lhes adoece.


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Domingo, 8 de Maio de 2022
O SUJEITO SUMIU
Uns dois ou três dias depois, após um dia de muitas tarefas, o caminho logo que tinha a atravessar pra chegar em casa às pressas, uma garotinha pesada que ainda tinha que carregar nos braços pelos escuros das ruas expressas, e toda uma dor de cabeça para se aceitar; chegando em casa não encontrou seu sujeito, esperou mais um tempo e ele nada de chegar, não se angustiou tanto pois vez por outra era assim que acontecia por algum trabalho que tinha pra terminar. Um novo dia chegou e ele nada de aparecer, ela se arrumou para voltar ao seu trabalho escravo, e não teve ninguém para se despedir. Continuava despreocupada pois outras vezes foi assim. Uma manhã intensa de tarefas a cumprir, uma lista enorme de afazeres que parecia sem fim, era como time de um só jogador, bater o corner e correr para cabecear. Maria, com tudo isto, de olho na missa e no vigário, pois tinha a pequena maria para cuidar. Toda uma manhã sem nem lembrar da ausência da noite que teve pra descansar.

Depois do almoço, após um montão de coisas para lavar, enxugar, guardar e fechar, após um montão de outras tarefas pra limpar e relimpar tudo que limpou pela manhã, lá pelo meio da tarde ela lembrou do seu sujeito, a noite que passou, a falta que fez, era seu mundo onde, a cabeça, podia reclinar. Era seu marido, ruim ou bom, era o seu homem, o seu sujeito especial, era com quem ainda podia contar... Onde estaria naquele momento? Onde dormiu? O que estaria fazendo para não ter ido lhe encontrar? Maria aproveitou aqueles momentos, enquanto sambava as mãos de um lado para o outro, de um serviço para o outro, e ia levando avante seus pensamentos. Estava no automático, fazia tudo e nem estava sabendo o que estava fazendo, mas depois de tanto tempo fazendo as mesmas coisas nos mesmos horários, tudo se fazia mais fácil e ela podia deslumbrar-se com o que estava sentindo pelo pouco que tinha, incluindo o desaparecido da noite. Havia um misto de alegria nos seus lábios, mas veio a preocupação, sem sentido, do que seria dela sem ele, sem aquela peça que pouco estava com ela, mas que tinha muito significado quando juntos se protegiam de um mundo de profundas sequelas.


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Segunda feira, 9 de Maio de 2022
MÁS NOTÍCIAS DO SUJEITO
Uns dois dias sem ver o marido no pouco tempo que sempre vê, foi para o trabalho e ficou sabendo do feriado, do dia da cidade; tudo parado pelo caminho, sem entrar no ritmo do agito, caminhou tranquila pelo seu querer, embora chegando ao trabalho recebeu relho pelo atraso da morosidade. Não sentiu a bronca que recebeu, até porque bronca nunca falta para aquela gente de assanhar, mas o que mais incomodava nossa Maria era a preocupação que a tudo isto antecedeu, onde estaria seu sujeito que nem notícia mandava de onde está. Ingressou, como sempre, na lista enorme de afazeres da casa, e, aos poucos foi esquecendo do tanto de pensamento que lhe assolava, era uma dor que substituía a outra em brasa, sem saber qual era pior antes a vida de dores que aquela mulher contemplava. No meio da manhã chegou um policial para aquela família, que conversou muito com a patroa que pareceu não gostar do que ouvia; deu a entender que estava pronunciando muita coisa ruim, até que, da sala, chamaram insistentes, a Maria.

Eram notícias de seu sujeito, estava preso desde algum tempo; procuraram contato com ela, mas não a encontravam em sua casa em nenhum momento, mesmo a noitinha quando é natural que toda gente esteja fora do trabalho, em seu aposento. O policial, autoridade constituída pelo Estado, testemunhou a exploração que se estabelecia naquele lugar, não esboçou nenhuma reação com isso, não reclamou nenhum crime disto, contou seu caso e nunca mais voltou a se interessar disto. Maria, destinada a ser como muitas marias, continuaria em sua caminhada com aguilhão, ainda mais agora com a notícia de perda e tristeza que aquele Estado trouxe e nada se interessou com sua servidão. Com sua criança, ela foi levada, pela autoridade, aonde estava seu sujeito. Chegando naquela delegacia o encontrou atrás das grades, cabeça baixa, envergonhado, decepcionado, chorando, parecendo um arrependido diante de frade.


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Terça feira, 10 de Maio de 2022
O CHORO DO DESABAFO
Encarcerado, engolido por uma cela curta, suja, mal cheirosa e escura, o sujeito chorava, parecia ser a pessoa mais arrependida do mundo; e lá estava a nossa heroína carregando todo o peso de sua vida, os compromissos com a criação de uma filha, e ainda chorando as dores daquele sugismundo. Ela chorava mais que ele, não tanto por ele, mas, mais por ela, mais uma traição que a vida lhe dava naquela caravela, mais um mar tenebroso a enfrentar em sua fatídica novela. Como pode tanta desgraça recair sobre uma só pessoa, como pode tanta miséria sobrevoar, com tanto gás, a existência de uma só canoa, que tanto mar se tem a enfrentar para que alguém possa dessa sela se livrar? Maria chorava copiosamente, até parecia que quanto mais chorava, mais saia de todo aquele inferno que abatia sua alma. Meu Deus como pode isto acontecer? Por que estes anjos marias nasceram só para sofrer? Pra que esses anjos de todos os dias existem só para, as tristezas da vida, colher? O coração daquela mulher chorava como nunca.

Ali, sentada, olhando tudo acontecer, sem entender nada, e quase chorando como resposta a tudo que participava, mariazinha não sabia o que fazer, brincar com os dedos, com um papel embolado ao seu lado, ou estar em  tudo que estava acontecendo diante de si. Num determinado momento a mãe olhou a criança, o choro dobrou em seu semblante indigente, a sua mazela não era um solo, era um dueto e não havia como ser diferente. Depois de alguns olhares para a inocente sentada a brincar e observar, Maria foi ao seu encontro, tomou a menina nos braços, apertou no peito, e lamentou a vida, lamentou ter nascido, lamentou ter sobrevivido a tudo e a todos, lamentou estar naquele lugar. Já era para ter se acostumado, nasceu pra sofrer, nasceu pra carregar todo espinho que a natureza pudesse fazer; nasceu para carregar a culpa de todo mundo, ou pelo menos, para tomar pra si o preço dos motivos da culpa que todos promovem. O que vai ser de agora para adiante? Quanto tempo aquela dor iria durar? Quanto tempo o sujeito, de suas desgraças, iria participar? Ela se derramava em dor e choro, segurava a menina e apertava a grade que separava seu sujeito do seu abraço para aquele terrível e real agoro.


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Quarta feira, 11 de Maio de 2022
O CHORO DOS ÓDIOS DE SEMPRE
Enquanto chorava, gritava, esperneava, xingava naquele lugar, mesmo estando naquele ambiente e os policiais a lhe censurar, Maria buscou saber do seu sujeito o que aconteceu para ele estar ali daquele jeito. Depois ouviu melhor o delegado que, angustiado, lhe contou detalhes daquela prisão, o que sabia e o que estava sob investigação. Enquanto se acalmava ouvindo tudo, por ouvir tudo, um fogo de raiva e revolta se acendeu mais ainda dentro daquela mulher que havia no seu peito. Não conseguia olhar para seu aprisionado, era um outro tipo de raimundo que estava se agigantando em sua vida, era mais um que lhe trazia traição para ela colher nesta sua lida. Meu Deus, o que fazer, perguntava Maria em sua alma. Correr sem ter aonde chegar? Gritar sem ter a quem? Chorar, chorar, chorar sem saber o que buscar? O que fazer? Lembrou da garota sentada, desta vez sem brincar, com os olhos esbugalhados olhando as reações da mãe naquele lugar. Feliz garotinha pelo presente, não sabe da missa, o terço. Pobre garotinha pelo futuro, não sabe o que a espera lhe fazendo berço.

Mesmo com os ombros caídos, vencidos, cansados, decepcionados, Maria se levantou decidida, movida por ódios que em toda sua vida, esteve a acumular. Pegou sua criança, amarrou entre os braços, e sem olhar nada, sem olhar pra ninguém, saiu com marcha forçada, como quem anseia chegar bem além. Tomou o rumo da rua, ganhou a maior distância que pode fazer, parou desta vez para pensar em suas ideias nuas, parou pra refletir no que podia querer, e mesmo depois de alguns minutos, parada no meio do passeio da rua larga, não encontrava o que, a si, dizer. Paradona no meio do nada, facilmente vista como alguém que não se encontrava, Maria foi encontrada, uma mulher bateu no seu ombro, precisou fazer isto umas três ou quatro vezes, para então ela se voltar e olhar quem lhe chamava no meio daquele temporal. Era um anjo, gente daquela igreja celestial que ela conhecia muito bem. Gente que lhe abraçara tantas vezes, gente de Deus que já lhe dera vida a uns cinco ou seis meses. A princípio Maria não a reconheceu, ela não era uma daquelas mais próximas, quando esteve por lá, mas ela, sim, entendeu a mãe e a menininha, aquelas marias; duas mulheres que, de muitas formas, àquela comunidade, esteve levando alegria. Não podia passar sem falar com a nossa guerreira estatalada no meio daquele lugar, não conseguiria deixar de ser o anjo divino daquele momento, e como se nada tivesse acontecendo, por ali, somente passar.


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Quinta feira, 12 de Maio de 2022
A ALEGRIA DOS AMORES DE SEMPRE
Maria foi levada pra sua casa, o anjo aparecido fez questão de levar e distrair a criancinha; chegando e entrando, a mulher viu as limitações do lugar, a pouca coisa e esperança que tinha. A mulher lacrimejou, não é possível que alguém viva nestas condições, é impossível imaginar que uma família viva com quase nada em disposições. Acostumada a buscar ajudas a muita gente, o pensamento da mulher varreu o mundo em busca de orientações, pensou em mil, alguma coisa precisava ser feita imediatamente para aquele vazio. Como um anjo sempre faz, mostrou-se solícita e interessada em participar daquela dor estampada no rosto da nossa heroína, avisou que precisava sair e que logo, sem demoras, estaria de volta trazendo alguma alegria para amenizar aquela sina. E se foi, ficou Maria e sua garota entre a cruz e a espada, entre a alegria e a dor, entre o ódio e o amor; não tinha forças nem para levantar de onde estava, tudo era muito pesado em suas costas que se esmagava. Maria não tinha saída, não via saída, só lhe restava, naquele momento, olhara sua criança, esperar de um lado outras traições da vida, e do outro lado, travessuras felizes daquele anjo e sua volta prometida.

O anjo voltou, bateu na porta; cheia de insegurança, mas como alguém que espera as melhores lembranças, Maria se levantou, mesmo decaída, foi abrir a bendita porta da esperança e descobrir o que a existência lhe reservava para aquela bem-aventurança. Pareceu aos seus olhos que abrira os portais do céu, eis que todos os anjos juntos e em coro, lhe aparecia em troféu. Cheias de sorrisos, mulheres invadiram a casa pequena de Maria; cheia de carinho, elas invadiram sua alma em romaria; parecia uma festa de comadres se encontrando depois de uma pandemia. Cada uma foi passando, abraçando, beijando, dengando, incentivando, dizendo e reafirmando que ela não estava só, aquele bando estava ali para estar com ela, houvesse o que houvesse, custasse o que custasse. Sem palavras, cheia de si, com um coração cheio de novidades assim, a nossa Maria teve vergonha de todo mundo, o que ela tinha ou fizera para merecer tudo aquilo, enfim? Será que Deus, realmente existe? E por que a dúvida disto? Quantas vezes, e com muita qualidade, estas mesmas mulheres foram deixadas por Maria e sua vaidade; e, como se nada tivesse acontecido, elas voltavam como se fosse a primeira vez, e com toda vontade? Nossa Maria está feliz, muito feliz, mas, com muita vergonha.


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Sexta feira, 13 de Maio de 2022
GENTE DO BEM, GENTE DO MAL
Muito envergonhada, e muito feliz, cheia de gratidão, quase pulando de alegria por um triz, Maria chegou a esquecer a situação do seu sujeito, embora, se lembrasse, até agradeceria por estar vivendo este efeito. Mas aquele primeiro anjo lembrava e lembrou, e organizou como poderiam ajudar aquela coitada naquela encostada que a vida lhe proporcionou. Não se preocuparam em saber nada do acontecido, embalar mãe e filha era o que mais parecia essencial a se fazer naquele sofrer oferecido. Em pouco tempo, no pouco que a casa oferecia, o lugar se transformou, mais luz, mais limpeza, mais beleza, mais flor, e o lugar pequeno, bem estreito num aconchegante, em forma de ninho, o pobre espaço se transformou. Era mulher de um lado para outro, mulher saindo e voltando com alguma coisa nas mãos, e a pequena geladeira ficou cheia, o pequeno armário também, milagres estavam acontecendo, e a nossa Maria, olhava, chorava, entendia que estava num além. Depois de um tempo, aos poucos, uma e outras foram se despedindo e saindo, uma ou duas ficaram para ajudar, nossa heroína se fazia envolvida, estava sorrindo, parecia a mulher mais feliz do mundo a se encontrar.

Naquele dia não voltou mais à delegacia, o detento tinha certo o de comer, o de vestir e o de deitar; por enquanto não iria se preocupar com isto, ela queria saber como fazer para o seu trabalho escravo ela não perder, ela continuar. Depois do almoço, agarrada à sua menina, foi à casa da patroa, foi conversar sobre tudo, e o que poderia fazer com seu sujeito, ela foi negociar. Conversou, conversou, nada ela pode conseguir, o serviço não tinha quem fizesse, as mesmas explorações teriam que se seguir, ou ela aceitava, e contente, ou teria que dar espaço para outra pessoa carente assumir. Não há dó diante da ganância, explorar o outro ao máximo é o que convém, mesmo assim se dorme tranquila, como com os anjos de Salem. O resto da tarde teria que ficar, para continuar as tarefas que a patroa, cansada, esgotada, teve que fazer em seu lugar, pela noite, saiu pra casa, com sua criança, um pouco mais tarde, até todas as tarefas do dia, ela encerrar.


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Sábado, 14 de Maio de 2022
TUDO VOLTANDO AO NORMAL
Depois de um dia cheio de tropeços e agonia, depois de viver tanto carinho e alegria, depois de um sono cansado, cheio de pesadelos e esperanças, a nossa amiga acordou para um novo dia, nas correrias de sempre, se preparando para correr para aquele emprego de submundo, buscando as suas coisas de cada canto, ela se depara de vez, abre os olhos da sensatez, e percebe a transformação que foi feita em seu lugar. Tudo muito limpo e carinhosamente arrumado também na cozinha, tudo bem guardado e armário cheio de alimentos e lanches para sua menininha. Maria relembrou as traições do mundo, como tudo e todos se juntam para contrariar o bem dos outros, mas concluiu: No meio de tudo isto, deste esgoto ganancioso que corre a céu aberto, há gentes de outro planeta, do céu talvez, eles habitam entre nós para suavizar o mal cheiro da maldade que, lá fora, corre descoberto. Relembrou que sempre em sempre tem encontrado essa gente, e que não devem ser poucos, pois estão por todo lado, sendo e fazendo as pessoas contentes.

Nesta contemplação fascinante, o tempo passou, ela perdeu sua correria, perdeu seu momento de sair, até não queria sair deste ambiente excitante. Mas, saiu, levando sua criança à cacunda, com pressa, mas, sem pressa, atravessou os corredores de todos os dias, até que chegou àquele planeta de dor, tortura, injustiça e agonia. Foi recebida com mãos na cintura, com o pé batendo a perguntar o que houve pra, tão tarde, no serviço, chegar. Depois que começou seu trabalho penoso e repetido, lembrou do marido, do seu sujeito que estava preso naquele pequeno e escuro lugar, que naquela semana não daria sua parte nas despesas da casa, e ela não teria como pagar. Conversou rapidamente sobre isto com a patroa, esta, como sempre, deu de ombros, e repetiu que nada poderia fazer sobre aquela broa; logo deu as costas, foi cuidar do que era seu, e deixou a nossa Maria cabisbaixa, sofrendo calada, buscando encontrar solução para seu coliseu.


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Domingo, 15 de Maio de 2022
A MÁQUINA CANSOU DE SI
Os dias se passaram, nossa menina crescida correndo para o trabalho, correndo com o trabalho, saindo um pouco mais cedo para correr para a prisão, pra depois correr pra casa; tudo sem nenhum atalho. Nesta correria toda, continuava recebendo visita, ajuda, apoio, e incentivo daqueles anjos, e umas duas vezes na semana chegava atrasada para as reuniões da igreja, daquele povo bom; em seus arranjos. Deus umas duas ou três semanas nesta situação, acostumada ao batente da pressa e do muito fazer, Maria nem sentia tanto as correrias que aquele momento de sua vida estavam a ser. Não tinha tempo para reclamar, não tinha tempo para pensar, não tinha tempo para odiar, não tinha tempo para mais nada, estava toda no automático, não tinha tempo nem pra sonhar. O que é uma mulher sem sonhar? O que é uma mulher sem sonhos? O mundo para, não há mais motivos para se fazer nada, para construir nada, para mudar nada, se estivéssemos nos tempos das cavernas, das cavernas não sairíamos. Elas precisam sonhar e terem a pressa que todas têm, para que o mundo se mova, para que o mundo se adeque, para que o mundo volte ao vai e vem.

Aos poucos, a máquina começou a falhar, atrasada pra acordar, atrasada para voar ao trabalho, atrasada para chegar e trabalhar como um burro, atrasada pra sair e visitar o seu sujeito preso, mais atrasada para as reuniões da igreja, atrasada pra chegar em casa e dormir. Aos poucos a máquina estava falhando, um dia não conseguia ir trabalhar, noutro não conseguia ir à delegacia, noutro não conseguia ir à igreja, até que a máquina falhou de vez, não conseguiu se levantar para nada e para ninguém. Patroa não apareceu, nem sabia onde aparecer; somente um ou dois anjos chegavam, se revezavam, para saberem e cuidarem da mulher e da filha. O dinheiro diminuiu mais ainda, o aluguel começou a ficar atrasado, energia elétrica e a água já estavam ameados, e Maria na cama sem saber ou poder se levantar. A criancinha o dia todo brincando ao seu lado, já andando trazia uma ou outra coisa que a mãe pedia, e nisto, dois ou três dias, até que foi levada ao posto de saúde e medicada. Voltando pra casa, a orientação era o descanso, o máximo de repouso, todo seu problema de saúde estava nisto, tinha que atender, custasse o que custasse.


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Segunda feira, 16 de Maio de 2022
A DOR DO SEU MARIDO
Marido preso, Maria doente, aluguel vencendo, comida acabando, um cenário triste, todo dia naquela mesma coisa. As manhãs raiavam trazendo angústia aos olhos de quem não conseguia sair da cama, só pela madrugada, aos trancos e barrancos, conseguia se arrastar pelas paredes pra atender alguma coisa que se fazia drama. Uns dois dias depois, uma mocinha foi escalada para dormir com nossa heroína. Simpática, agradável, excelente companhia, a adolescente se fazia interessada em não deixar nada faltar à acamada; na mesma sorte, a garotinha, as atenções maternas que precisasse dentro dos limites que o lugar tinha. Os anjos daquela igreja mobilizaram algum dinheiro para remunerar aquela jovem, não conseguiam dormir direito sabendo que mil necessidades as noites cobravam pelas travessuras que promovem. A doente foi levada outras vezes ao médico, chegou a ir ao hospital distante, a mocinha cuidando da menininha, e alguém indo à prisão informar tudo, sempre, ao marido exitante. Foi mais de uma semana neste rojão, e parecia que nada melhorava, parecia que nada iria mudar, até a nossa Maria despertou da enfermidade e, aos poucos, ao seu cotidiano ter que assumir, ter que voltar.

O emprego explorador, ela perdeu, a patroa, segundo ela mesma, não podia esperar, as mulheres-anjos da igrejinha se mobilizaram na procura de um novo serviço, para ela, para aquela situação, encontrar. E, encontraram. Com pressa, na primeira oportunidade, Maria foi rever seu sujeito preso, estava com saudades daquela pessoa que, de muitas maneiras, fazia parte da sua vida, fazia, também, parte do seu cortejo. Chegando lá esqueceu-se de si, de tudo que passara nos últimos dias até ali, seus olhos encheram de lágrimas, sentiram dores diante do que viu, um homem que não era mais aquele homem, um magricelo, debilitado, acorcunhado, cheio de tristezas e desanimado, pareceu até que não a reconheceu, até mostrou que não acordou, diante da sua chegada saudosa. Não disse nada e já estava se derramando em lamentos, abraçada na grade e naquele corpo frágil de homem mal tratado, encontrou forças que não tinha, para se manter em pé, abraçada naquela situação, sentindo seu coração pular, e pular, sem saber o que fazer para aquilo tudo mudar, e mudar.


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Terça feira, 17 de Maio de 2022
NUM PARAÍSO
Chegou o dia de ir para o novo trabalho, chegou a hora de conversar com a nova patroa, chegou o momento de saber se vai aceitar... Ouviu, ouviu, sabia de tudo que era pra ser feito cotidianamente, repetidamente; teria que trabalhar menos que na casa anterior, teria que dar menos tempo que na casa anterior, teria que ouvir menos reclamação que na casa anterior, pois a patroa passava grande parte do dia fora e chegando cedo, Maria poderia ir, cedo, embora pra sua onde mora. Como não poderia ser diferente, a garotinha continuaria sendo seu tiracolo e, enquanto trabalhasse, poderia dar atenção a ela, até com seu colo. Em comparação com a situação anterior, nossa heroína estaria quase que num paraíso, caso não fosse a questão do quanto iria ganhar por seu valor. Seria menos que antes, uma ajuda que receberia, por uma ajudona que ofereceria, mas os anjos de sempre se mostraram interessadas num complementar solidário, até por que o seu sujeito estava preso e não tinha como ajudar nas despesas mensais com algum salário. Tudo foi acertado e Maria começaria no dia seguinte. Antes de ir pra casa, que não era tão perto, passou na delegacia, que não era tão perto, e foi se fazer, ao marido, de ouvinte.

Maria não sabia se fazia festa ou continuava nas suas lamúrias que sempre existia, não sabia que o que estava acontecendo era bom, ou se era apenas o início de um ruim que logo se avolumaria. Em homenagem aos anjos, ela decidiu acreditar que tudo estava às mil maravilhas, em gratidão aos anjos, decidiu fazer festas, resolveu quase atravessar as distâncias aos seus destinos, sob pulos, sorrisos e felicidades de andarilha. Num momento com a criança a caminhar em suas mãos, noutro com ela a escanchar do seu lado, ela seguia seu rumo a querer acreditar que estava com quase tudo sob controle, ou pelo menos sob o controle dos anjos que não a deixavam desanimar. Conversou com seu sujeito, com o delegado, com os guardas do lugar, conversou com gente na estrada, com vizinhos, com a menina e até com gente que por ali não estava a lhe escutar; era um tipo de entusiasmo e credulidade que estimulava o coração a ser um ela que nem ela acreditava que era ou poderia ser naquela proporção. Estava acreditando na vida, acreditando em gente, acreditando em tudo e todos, que todo o mundo merecia uma nova chance de mostrar o que ela sempre reclamou não serem em mente.


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Quarta feira, 18 de Maio de 2022
O QUE FAZER DA VIDA?
Num final de semana, de novo, Maria acordou pra vida, para sua vida, pensou em tudo que era sua realidade, tudo que era sua verdade, aquele tramoio de situações que redigia seu cotidiano e lida; as coisas não poderiam continuar naquele ditame, não poderia se acomodar naquele carrossel infame. Tinha os anjos a seu favor, mas não poderiam, nem iriam ficar a vida toda em tudo aquilo. Lembrou do marido onde suas culpas se mantinham, não sabe da gravidade do que fez, mas não podia ficar na espera de sua volta enquanto sua menina e suas angústias cresciam. Meu Deus, o que fazer deste mangoa? Que rumo dar a tudo aquilo? Cadê a liberdade da democracia que tanto ouviu falar? Cadê a tal liberdade onde ela poderia fazer acontecer seus ideais? A tal livre iniciativa? Briga-se tanto por tudo isto, mas só para alguns desfrutarem, justamente os que não brigam por ela, é que mais gozam dela. Pensou, pensou, buscou ouvir, naquele dia, um dos anjos que lhe apareceu em casa a visitar, e naquele dia de descanso, quando só teria a igreja para ir, foi o dia que tirou para sonhar na falta de sonhos que tinha pra bancar.

Estava na reunião da igreja, num momento acompanhava os que cantavam, noutros os que liam, noutros os que faziam declarações, e noutros invadia seu interior em busca de saber o que ser e o que fazer. A mariazinha sempre ao lado, além de lhe ser um peso, em muitos sentidos, era também seu estímulo, sua esperança, entendia que a existência daquela coisinha lhe forçaria a descobrir portas que lhe trouxessem soluções. Como não encontrava solução, voltou a conversar com alguns daqueles anjos de sempre sobre isto, no final da reunião e enquanto iam em direção a suas casas. Havia uma angústia muito grande na alma de Maria, parece que não se encontrava solução para sua questão, estava destinada a vagar pelas peripécias da vida a depender dos outros. Deus, cadê você? Naquele dia mesmo, ainda foi visitar o seu sujeito, e, com ele, conversou sobre as mesmas coisas, e ficou estampado no rosto preso a desfiguração do homem que não era homem, de quem não tinha como dar conforto ao coração de sua maria.


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Quinta feira, 19 de Maio de 2022
ÀS MIL MARAVILHAS
Um mês estava se passando, comparado ao trabalho de antes, este era um céu mal pago, mas era muito melhor; Maria tinha tempo pra tudo, pra si, pra criança, pra o preso, para casa e para a igreja. Até o dinheiro parecia estar sob algum milagre, pois estava dando pra pagar tudo sem a ajuda dos anjos. Havia felicidade e sorriso no coração dela, havia realização imensurável em sua fisionomia. Os anjos estavam alegres, e, aos poucos, foram deixando de dar tanta atenção para já estar socorrendo outros endereços que tinham, outras marias que haviam. Não paravam, parecia até que cavavam situações para se envolverem, parecia ter prazer na desgraça dos outros. Só parecia, pois choravam com quem chorava e sorriam com quem sorria, ficavam radiantes nos resultados como o de Maria. Teve um dia que perguntaram se ela não gostaria de fazer parte do grupo, ser mais um anjo para outras que também se mostravam precisas. Ela desejou, ela planejou, mas desde o primeiro dia de ação, não teve como, ficou sem esta opção; dia atarefado no trabalho e na prisão. Maria lamentou, e decidiu participar quando houvesse ocasião.

O final do mês chegou, o balanço da vida foi positivo, repetindo o que ouvia e o que já sabia, teve vários momentos para agradecer a Deus. Foi o melhor mês nos muitos últimos meses, em tudo falando. No serviço, no menor cansaço, no dinheiro, no tempo com seu sujeito, no ver sua criancinha crescer, no contato com os anjos, com a igreja, com o mundo que estava a viver. Maria era outra, estava entusiasmada com seu existir, andava sorrindo pelas paredes com tudo que estava a sentir, alegrias, realização, era a própria felicidade em pessoa, a pesar de toda aflição. O que este novo mês reserva pra ela? O que o destino tem marcado nesta procela? Não importa, pensava ela, vou desfrutar bem o gosto que estou sentindo, vou viver bem o prazer que está me abrindo, não vou perder tempo olhando o passado, nem me preocupando com o futuro, vou ser gente como há muito tempo não venho me submergindo. Realmente estava tudo do gosto, tanto pra ela que estava diretamente em tudo aquilo, quanto para os anjos que não a esquecia, para aquela garotinha que, mais que o normal, crescia; como para a igreja que, cada vez mais, a amava, aceitava e, com muito respeito, a acolhia
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Sexta  feira, 20 de Maio de 2022
MAIS UM INFORTÚNIO
Umas três semanas já são passadas, e o de sempre continuava sendo o de sempre, trabalho, trabalho e trabalho; prisão, saudade e aquele atrapalho; igreja, reuniões e aqueles anjos, verdadeiros e maravilhosos quebra-galhos; tudo como era antes no quartel de Abrantes. Um momento Maria sorrindo, alegre, agradecida, cheia de vida; uma filhinha já crescida, um marido numa cadeia apodrecida, um lugarzinho para dormir e se fazer de gente merecida, e a vida vai se tocando numa marcha que parecia só felicidade comprimida. Por outro lado, e ao mesmo tempo, Maria triste, envergonhada de si, cheia de dores no peito, como se fazendo assim; entendia que nada mais que isto merecia, não só pela vida que tem pra viver, mas a vida em si que lhe faz, disso tudo, sobreviver. Nesse tempo, enquanto saboreava este antagonismo, vendo e convivendo com anjos e diabos, numa tarde, chegando em casa, encontra a porta dos fundos arrombada, encontra a casa pequena e pouca, revirada; não parecendo que foi roubada, tudo pouco estava por lá, mas alguma coisa, procuraram e não sabe se encontraram. Estar em desgraças era seu dia a dia, não nasceu para passar muito tempo em alegria, não tinha como superar esta sina desgostosa e de sangria. Como pensar em ser gente quando tudo lhe entrega, como constante, as piores patifarias?

Foi aconselhada, pelos vizinhos a fazer uma queixa na delegacia, e com muita insistência de todos, diante do que ficou; ela foi logo e ainda encontrou o oficial devido, para explicar o que aconteceu, pelo menos o que ela viu quando chegou. Juntando as peças, na primeira hipótese investigativa, num só saber; o policial entendeu do que se tratava, dívida do marido de Maria a pessoas que não se deve nada dever. Foram procurar alguma coisa que pertencia a eles e achavam que o sujeito preso havia escondido em algum lugar, talvez em sua casa, possivelmente o melhor lugar para encontrar. Ela deveria tomar cuidado por que se não encontraram, e não levaram nada que se queria, iriam voltar e ela deveria dar contas, mesmo que não soubesse nada do que seu marido devia. Foi ao seu sujeito preso e contou tudo que ocorrera, contou a entendimento do policial, queria ouvir o que ele teria a dizer. Ele ouviu e se calou, ele ouviu tudo e chorou, não tinha nada o que fazer, não tinha nada pra pagar, não tinha nada pra devolver. Apenas chorou, abraçados a uma grade, os dois choravam. Era tarde e ela se foi, quando em casa, arrumou o que pode, colocou alguma ordem no lugar, fez o que deveria fazer e sempre fazia, e foi dormir, para no dia seguinte, entre outros afazeres saber bem o que fazer da vida, do lugar e da situação.


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Sábado, 21 de Maio de 2022
MAIS UM INFORTÚNIO
A noite passou, Maria dormiu e acordou, de sua menininha ela cuidou, fez tudo que precisava fazer e voltou a dormir como um bebê. Amanheceu o dia e nada de acordar, nem ela nem a garotinha que sempre cedo estava a balbuciar. A nossa heroína não acordou. Passou a manhã quase toda e maria não acordava, isso incomodou a vizinha que, muito amiguinha, era primeira pessoa a se ver todos os dias, e a última a se despedir em suas partidas com alguma alegria. Bateram na porta, e Maria não acordava, ninguém dentro da casa, qualquer reação, demonstrava. Pularam o muro e foram pela porta de trás, encontraram aberta, escancarada, e o silêncio da ausência, de dentro da casa, era o que imperava. Entraram porta a dentro, ninguém na cozinha ou na sala de arranjos, mas no quarto do lugar, a nossa Maria dormia o sono mais profundo dos anjos. Abriram a porta da frente, a vizinha amiga entrou e foi, a dorminhoca, acordar; o horário de trabalho havia passado há muito tempo, e a porta dos fundos amanheceu aberta, pra muito falar. A mulher insistiu, continuou a chamar, Maria não respondia, e não atendeu, por baixo do cobertor, mais uma vítima do tráfico, aquela maria morreu. A mulher correu pra ver a criança, num berço no outro canto daquele quarto sofrido, também estava morta, fazia parte daquele quadro triste, injusto, amanhecido.

Mais uma maria que se vai, gente que viveu e nem sabe pra que viveu, gente triste que pensando que vivia, apenas, da vida, sofreu. Sem ter culpa, e tendo todas as culpas do mundo, sofre na pele as ações e as consequências de muitos raimundos, um outro tipo de gente que vive e ninguém sabe pra que vive, gente amarga que parece ter prazer em fazer parte do sofrimento dos que, com ele, convive. Mas outras marias estão por aí, sofrendo as mesmas dores de todas, e, por um milagre ou outro, sobrevivem e são capazes até de, a estes raimundos, sobressair e ajudar outras marias, e ajudar até esses patifes maléficos que estão pelo mundo. A vida não é justa pra ninguém, até os malfeitores embriagados pelo “amor ao dinheiro” dos outros, suas vítimas, sofrem com as injustiças que eles próprios plantam com as razões que insistem serem legítimas. As marias nascem pra enfeitar a existência, são maltratadas o tempo todo, com nossas incongruências, com nossas inconveniências, e ainda assim, elas brotam e cheiram como flores perfumadas ao nosso redor, e mesmo, com tudo isso, nunca dói as nossas consciências. Eram pra serem tratadas a pão de ló, no melhor tratamento que poderíamos dar, as nossas mães, nossas irmãs, nossas amigas, nossas colegas, nossas namoradas, nossas esposas, e outras que poderíamos mencionar; os maiores beneficiados seríamos nós, mas, somos nós que, com nossas próprias mãos, tiramos delas a possibilidade de nos fazerem ainda mais felizes, em nosso fatídico comportamento psicopata e algoz.




matérias de minhas ambições

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RESPONSÁVEL
Pr. Psi. Jor. Jônatas David Brandão Mota

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